Psicanálise

Uma visão sobre as teorias e as práticas psicanalíticas

“O Problema Econômico do Masoquismo”

“O Problema Econômico do Masoquismo” – Freud, Obras Psicológicas Completas, vol. XIX. 

  1. O problema do masoquismo traz um questionamento essencial ao ponto de vista econômico desenvolvido por Freud. Se o aparelho psíquico está orientado pela obtenção do prazer e pela evitação do desprazer, o sofrimento como objetivo seria incompreensível.
  2. A resposta para esse problema está, segundo Freud, em encontrar as relações entre o princípio do prazer e as pulsões de vida e de morte.
  3. O princípio desprazer-prazer deveria estar identificado ao princípio de Nirvana (carga-descarga). A teoria Freudiana traz uma série de problemas aqui: Eros está a serviço da introdução de uma perturbação que é a própria vida e, portanto, diretamente conectado ao princípio de prazer. Mas, como o aumento de carga/tensão poderia trazer prazer? Na realidade, como observa Freud, obter prazer através de aumento de tensão e não na sua diminuição  não deveria ser uma novidade, o prazer sexual é tipicamente obtido dessa forma. (mas lembre-se que a descarga é uma meta que se não realizado gera frustração e desprazer).
  4. Freud procura, então, uma resposta a esse dilema introduzindo a idéia de que não se pode simplesmente avaliar o prazer-desprazer a partir de uma perspectiva quantitativa. É preciso encontrar um aspecto qualitativo. Mas afirma não saber o que é esse elemento.
  5. “Seja como for, temos de perceber que o princípio de Nirvana, pertencendo à pulsão de morte, experimentou nos organismos vivos uma modificação através do qual se tornou o princípio de prazer e, doravante, evitaremos encarar os dos princípios como um só. Se nos preocuparmos em acompanhar essa linha de pensamento não é difícil imaginar a força que foi a fonte dessa modificação. Ela só pode advir da pulsão de vida, a libido, que assim, lado a lado com a pulsão de morte, apoderou-se de uma cota na regulação dos processos da vida”.
  6. Freud, então, teoriza o seguinte: princípio de prazer corresponde a Eros, à pulsão de vida, o princípio de Nirvana corresponde à pulsão de morte e o princípio de realidade, à influência do mundo externo.
  7. Aqui Freud introduz uma noção importante: os diferentes princípios toleram-se mutuamente, podendo, no entanto, haver conflitos pelo fato de terem objetivos diferentes: uma redução do estímulo para o princípio de Nirvana, uma característica qualitativa do estímulo no caso do princípio de prazer (libido faz Tânatos se transformar em Eros) e um adiamento da descarga e uma aquiescência temporária ao desprazer devido à tensão imposta pelo princípio de realidade). Conclusão: o princípio de prazer é o vigia de nossas vidas.
  8. (Uma questão: dentro de uma perspectiva em que as pulsões se encontram fundidas, não haveria vida sem morte, não haveria prazer sem desprazer. Tanto do ponto de vista quantitativo (carga e descarga) quanto qualitativo (libido e constância), Eros e Tânatos se encontram fundidos, como afirma o próprio Freud em o Eu e o Isso. Há constância em Eros e libido em Tânatos. O princípio do prazer e o princípio de nirvana isolados seriam a negação da própria existência).
  9. Três formas de masoquismo: masoquismo erógeno (prazer na dor), masoquismo feminino (introdução da potência através do ato sexual em si, ser forçado à obediência incondicional – passividade / princípio feminino, que é, na perversão, associado a ser aviltado, maltratado, sujo) e masoquismo moral (sentimento de culpa). Começa a reflexão pelo segundo.
  10. No caso do masoquismo dito feminino, a conclusão é que a pessoa quer ser tratada como uma criança travessa, pequena e desamparada que deseja ser conduzida, dominada. O termo feminino surge pela posição de estar castrado, ser copulado ou dar a luz ao bebê (os tempos do Édipo na mulher segundo Freud). (Nesse sentido, esse masoquismo corresponderia a uma repetição desses tempos do Édipo em uma situação onde a castração não se perfez – o termo masoquismo infantil também poderia ser utilizado). No masoquismo feminino surge também um sentimento de culpa – o indivíduo presume que cometeu algum crime que deve ser expiado.
  11. Interessante notar o seguinte: esse masoquismo feminino que se manifesta sob a forma de um masoquismo erógeno seria a repetição de um mecanismo essencialmente infantil: na seção sobre as fontes da sexualidade infantil nos Três Ensaios, Freud afirma que a excitação sexual surge tão logo a intensidade adquire um certo quantum. De acordo com essa idéia a excitação libidinal tem a ver, na criança, com um acúmulo de carga e não com a descarga. Esse aspecto seria abandonado com o tempo / com o amadurecimento (poderíamos dizer que teria direta relação com o fortalecimento do Eu e com a capacidade do sistema psíquico em direcionar sua libido para determinados objetos).  Essa é a fundação sobre a qual o masoquismo erógeno estaria construída.
  12. Mas essa explicação não daria conta das correspondências existentes entre o masoquismo e o sadismo.  Freud retoma sua teoria exposta nas duas classes de instintos (pulsões): os organismos multicelulares tenderiam a tornar inócuo o mecanismo destruidor através da líbio que teria por missão direcionar a pulsão de morte no sentido dos objetos do mundo externo. A pulsão de morte se transforma em pulsão de destruiçãoo, dominação ou poder. Nesse sentido, uma parte da pulsão não compartilharia dessa transposição e se voltaria contra o indivíduo. – aqui podemos identificar o masoquismo erógeno.
  13. “Não podemos presentemente imaginar a extensão das partes das pulsões de morte que se recusam a serem amansadas assim, por estarem vinculadas a misturas de libido”.
  14. Os mecanismos biológicos são aqui amplamente desconhecidos, mas percebe-se uma amálgama entre as pulsões de vida e de morte em proporções variáveis. (Freud parece aqui não se desvincular de uma noção quantitativa – quantidades diferentes de pulsões. Parece-me que os processos psíquicos, normais ou patológicos, estão mais determinados por combinações qualificadas, ou significadas, entre essas duas pulsões).
  15. No masoquismo erógeno, assim como no sadismo, a pulsão de morte, tomada pela libido, escolhe um objeto. No caso do masoquismo o Eu é esse objeto. Assim como há um narcisismo secundário pode também haver um masoquismo secundário, onde a pulsão de destruição voltada para um objeto pode se recolher no Eu. (Interessante notar o seguinte: no processo de identificação com objetos, dentro da vida libidinal do indivíduo, pode-se supor, assim, que um objeto odiado pode ser introjetado, tanto quanto um objeto amado).
  16. O masoquismo erógeno acompanha todas as fases de desenvolvimento da libido: fase oral = medo de ser devorado pelo animal totêmico (figura do pai); fase anal-sádica: desejo de ser dominado e espancado; fase fálica = fantasia da castração; fase genital: ser copulado e dar à luz.
  17. No masoquismo moral há um aspecto importante: afrouxamento da vinculação com a sexualidade (mas não com a libido). Não é o sofrimento infligido pela pessoa amada, mas o próprio sofrimento é o que importa. “… o verdadeiro masoquista sempre oferece a face onde quer que tenha a oportunidade de receber um golpe”. Nesse masoquismo, há um sentimento de culpa inconsciente (mais precisamente uma necessidade psíquica de punição) e a satisfação desse sentimento é o lucro auferido pelo indivíduo através da doença (lucro no sentido de satisfação psíquica). O sofrimento acarretado é o fator que torna a doença valiosa para o masoquista. Muitas vezes, a tendência masoquista desaparece quando substituída por um outro sofrimento de causa exógena.
  18. A função de consciência moral está atribuída ao Supereu e a culpa reflete uma tensão entre o Eu e o Supereu. O Eu reage com sentimentos de ansiedade já que não pôde estar à altura das exigências feitas pelo Supereu. Questão: como o Supereu veio a representar esse papel e por que o Eu deve temê-lo nessa configuração?
  19. O Supereu é tanto um representante do Isso, quanto um representante das exigências do mundo externo. Surgiu como uma modificação do Eu a partir das introjeções dos primeiros objetos que receberam os impulsos libidinais do Isso. Mas essa relação com esses objetos foi dessexualizada, pois somente assim se pôde superar o complexo de Édipo, mas o Supereu reteve as características da pessoa introjetada (ou melhor dizendo da função representada pela pessoa). Mas essas figuras que foram introjetadas também representam o mundo externo e seus imperativos, onde “jazem escondidas todas as influências do passado” (e do presente também, afinal, na saída do complexo de Édipo, o falo está inserido na cultura). O Supereu é o herdeiro do complexo de Édipo um modelo ideal de adequação ao mundo externo (tal como percebido e significado).
  20. O curso do desenvolvimento do indivíduo faz com que o Eu se torne mais resistente às influências dos objetos externos e as imagos de pais, professores, autoridades, ficam em segundo plano, assumindo a forma de um senso ético próprio. O último representante do poder parental supremo parece ser o Destino que poucas pessoas conseguem ver como algo impessoal, transformando-o em razão e necessidade. O Destino, no mais das vezes, incarna-se na visão parental da sorte, materializada na existência de um plano divino e de um pai celestial.
  21. Os indivíduos que possuem uma ultramoralidade parecem inibidos e se tornam masoquistas se transformam o sadismo do Supereu (que pode se tornar mais facilmente consciente) em masoquismo do Eu, necessidade de punição satisfeita pelo sofrimento que constitui o núcleo do inconsciente.
  22. “A consciência e a moralidade surgiram mediante a superação, a dessexualização do complexo de Édipo; através do masoquismo moral, a moralidade mais uma vez se torna sexualizada, o complexo de Édipo é revivido e abre-se o caminho para um regressão, da moralidade para o complexo de Édipo”.  A consciência se desvanece no masoquismo (que pode ser caracterizado como uma perversão). Novamente, o masoquista tenta realizar ações proibidas que devem ser expiadas pela consciência sádica. “A fim de provocar a punição deste último representante dos pais, o masoquista deve fazer o que é desaconselhável, agir contra seus próprios interesses, arruinar as perspectivas que se abrem para ele no mundo real e, talvez, destruir sua própria existência real”. (oralidade erógena revertida contra o sujeito)
  23. Interessante notar que no masoquista, há uma supressão da pulsão de destruição (supressão cultural dos instintos). A destrutividade alimenta o sadismo do Supereu o que, por sua vez, alimenta o masoquismo do Eu. Quanto menos agressiva a pessoa se tornar no mundo real, mais severo será o Supereu. (a libido e a destrutividade estão presentes mas não há relação de objeto).
Frederico Celentano

“As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal”

“As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal”. Freud, Obras Psicológicas Completas, vol. XVII.

  1. Os traços de caráter ordem, parcimônia e obstinação que têm em seu espelho a avareza, o formalismo e a obsessão indicam uma intensificação de componentes anal-eróticos. A questão, a partir de então, tornou-se a de saber qual o destino do erotismo anal após a organização genital definitiva? Preserva sua natureza original, mas é reprimido? É assimilado ou sublimado? Encontra lugar dentro da organização genital.
  2. Para explorar essas questões, Freud constrói uma séries de símbolos que podem nos dar pistas de como essa fase pré-genital, como a libido advinda de uma zona erógena e como a pulsão a ela vinculada se estruturam, ganham sentido na vida adulta. Os símbolos utilizados são as fezes, a dádiva e o dinheiro e, também, sua relação com pênis e bebê na organização do psiquismo feminino através da controversa teoria da inveja do pênis que seria substituído, no curso do desenvolvimento da libido feminina, pelo desejo de um bebê e cuja frustração pode levar à eclosão de uma neurose – o amor objetal na mulher somente se perfaria pela substituição do pênis por um homem, como um reforço libidinal inconsciente dentro do processo de castração ou, no caso de uma mulher em que os traços narcísicos são mais acentuados, pela escolha objetal do filho.
  3. O importante aqui, mais uma vez, volta ser ao símbolo das fezes, ou seja, daquilo que se pode dar e compartilhar, obedecendo a um comando, ou daquilo que se retém, onde se afirma uma vontade, um desafio (obstinação a um comando), retirando-se um prazer erógeno da zona por onde se retém e por onde se concede a dádiva. Há, certamente, aqui uma aplicação narcísica ao erotismo anal.
  4. Dessa maneira, o interesse pelas fezes permanece simbolizado como interesse pelo que é criado, pelo que pode ser retido, acumulado, sendo que o dinheiro assume simbolicamente essas características.
  5. Não se pode esquecer também que num primeiro momento a criança efetivamente pode associar o órgão masculino às fezes já que não o vê na mulher, crendo que ele pode ser destacado, criado, produzido. As fezes também se associam à imagem de pênis (que pode se tornar símbolo de poder ou dominação).
  6. Na mulher, as fezes e o pênis convergem em um impulso anal-erótico e em um impulso genital que dão origem à associação com o bebê, dádiva, uma criação. Dessa maneira fezes, pênis e bebê são os três corpos sólidos, forçando a penetração ou expulsão, estimulando passagens membranosas. Dessa forma, é interessante notar como uma correspondência orgânica reaparece na esfera psíquica como uma identidade inconsciente. (Essa frase é talvez, a mais interessante contribuição desse texto: a capacidade de simbolizar o próprio corpo e o corpo do outro, criando relações de objeto e significando essas relações em termos de dádiva/criação, dominação/ retenção e até mesmo acumulação).
Frederico Celentano

A disposição à neurose obsessiva: uma contribuição ao problema da escolha da neurose

“A disposição à neurose obsessiva: uma contribuição ao problema da escolha da neurose”. Freud, Obras Psicológicas Completas, vol. XII.

  1. Freud coloca a importante pergunta de saber por que uma pessoa cai enferma de uma neurose específica (presumo aqui que ele se refere às psiconeuroses de defesa dentre as quais se incluem a histeria e a neurose obsessiva).
  2. Para responder à essa pergunta, ele irá tentar se concentrar no caso da neurose obsessiva e lembra inicialmente que o ser humano passa por várias fases de desenvolvimento das funções sexuais e do ego e que, não somente, esses desenvolvimentos estão conectados, mas ocorrem de maneira tumultuada, podendo surgir no indivíduo um apego a um estádio de desenvolvimento, um ponto de fixação para o qual a função sexual ou do ego tenda a regredir.
  3. (Aqui vale a pena tão somente relembrar os estádios pré-genitais que Freud identifica ao longo do seu desenvolvimento: estádio auto-erótico (1899 – 1905), o estádio narcísico (1909 – 1911), estádio anal-sádico (1913), estádio oral (1915), estádio fálico (1923)). Cf. quadros de conceito dos resumos do primeiro ciclo.
  4. O que determina a regressão são fatores disposicionais ou fatores ligados à história do indivíduo. Freud em seus escritos irá cada vez menos considerar os fatores disposicionais como hereditários, mas tendo relação com o desenvolvimento pré-genital.
  5. (Freud está ainda numa fase preliminar do desenvolvimento do seu pensamento, posteriormente irá separar a Paranóia e a Demência Precoce das psiconeuroses de defesa, irá encontrar um paralelo entre a histeria e o complexo de édipo). Aqui, no entanto, identifica o aparecimento de traços da Histeria, Neurose Obsessiva, Paranóia e Demência Precoce com as fases de desenvolvimento libidinal do ser humano, a histeria aparecendo de maneira bastante primitiva, a Neurose se vinculando ao desenvolvimento do sujeito entre 06 e 08 anos e as parafrenias após a puberdade.
  6. No entanto, o aparecimento de um sintoma patológico nada tem a ver com sua origem na história de desenvolvimento do indivíduo. Embora as parafrenias apareçam após a puberdade, apresentam características (megalomania, dificuldade da transferência na relação analítica) que indicam uma fixação num ponto em que ainda não houve a escolha objetal, na fase auto-erótica ou narcísica.
  7. Dessa forma, Freud supões que as duas psiconeuroses de transferência, a histeria e a neurose obsessiva, teriam seus pontos de fixação em estádios posteriores. Mas, mais do que isso, apoiando-se em observações de casos clínicos e, particularmente, de um caso individual, verificou que a histeria poderia se transformar numa neurose obsessiva no curso do tratamento. Assim, um mesmo conteúdo poderia ser traduzido em linguagens diferentes, mas isso poderia arruinar a tese sobre as fixações específicas para cada tipo nosológico.
  8. Freud afirma, então, que no decorrer do caso em questão, identifica a origem das duas psiconeuroses em conteúdos distintos.  Em primeiro lugar a paciente em questão teria desenvolvido uma histeria de angústia por ter descoberto não poder ter filhos do homem que amava. Em seguida, o homem, percebendo a frustração da esposa, acaba se tornando impotente, o que gera uma neurose obsessiva, formação reativa, aos próprios impulsos sexuais que passou a reprimir (através de uma mania de lavagem e limpeza).  (No entanto, aqui há um problema grave a ser resolvido: é a fixação que é constitutiva e leva a um tipo de neurose, ou o conteúdo recalcado que leva a um tipo de fixação e, portanto, a um tipo de neurose? Em a resposta tendendo para a segunda hipóteses, não haveria fixação constitutiva no desenvolvimento libidinal).
  9. Freud aqui procura justificar a inclusão de um novo estádio no desenvolvimento libidinal. Primeiro o auto-erótico, onde as pulsões parciais do indivíduo buscam satisfação no próprio corpo, ainda fragmentado. Depois, essa mesma satisfação já se faz com a escolha de um objeto que é o próprio corpo, constituído e reconhecido. Mas antes de se chegar à primazia dos genitais, descobre um estádio intermediário, onde predominam os impulsos anal-erótico e sádico.
  10. Freud identificou um forte impulso anal-sádico nas fantasias de espancamento da paciente e supõe que, no período de latência, esse impulso de dominação (ser dominado ou castrado pela dominação) deu ensejo a um crescimento moral exaltado (aqui já se vê em construção a teoria da castração). Quando sua vida sexual desmoronou, a paciente voltou a um estádio infantil anal-sádico.
  11. É preciso lembrar que o erotismo anal está diretamente ligado à atitude passiva. (No entanto, parece questionável a hipótese de que haja uma relação direta entre a disposição anal e o homossexualismo, já que não tem direta ligação com a escolha objetal do mesmo sexo, bem mais complexa e que envolve diversos fatores como a identificação, etc.).
  12.  Tentando responder à questão sobre a existência dos pontos de fixação, Freud insiste em afirmar que há fases pré-genitais e que é errôneo pensar que elas não existiriam e que seria apenas pelo processo de repressão sexual, numa fase já genital, que as neuroses são compelidas a dar expressão ao desejo sexual suprimido por outras vias, sexualizando impulsos não sexuais, como uma compensação pelo desejo que não se pode realizar diretamente. Isso tem direta relação com o reconhecimento da existência de zonas erógenas e de um conceito ampliado de função sexual que não se resume à função genital.
  13. Interessante distinção que Freud faz entre a formação do caráter e da neurose. Naquela a repressão não teve lugar ou teve sucesso e deu origem a formações reativas ou sublimações não patológicas. Na neurose há sempre a repressão e o retorno do recalcado.
  14. Na neurose há conflito e um esforço para impedir que a regressão ocorra. Daí formações reativas e sintomas são produzidos como formas de conciliação, pois a regressão verdadeira significaria obter um prazer que em algum momento foi interditado. Se realizada, poderia ser classificada como uma perversão.
  15. Freud reconhece em sua teoria várias lacunas: a primeira é a compreensão mais profunda de como ocorre a transformação do sadismo e do erotismo anal reprimidos em uma função intelectual elevada como a sede de conhecimento que marca várias pessoas. A segunda lacuna é mais fundamental: articular o desenvolvimento do ego ao desenvolvimento libidinal (interessante notar que Freud não conceitua desenvolvimento do ego). Aqui exemplifica o que quer dizer, afirmando que na neurose obsessiva parece haver uma ultrapassagem cronológica do desenvolvimento do ego ao desenvolvimento da libido. O Ego parece querer proteger sua escolha objetal proibida da hostilidade que espreita por trás dele. A consciência moral se desenvolve precocemente. Daí afirmar-se que o ódio é precursor do amor (ódio pela frustração de uma escolha objetal impossível que irá se transformar em amor por um novo objeto). Ódio (e, portanto, culpa) seriam relações emocionais primárias.
  16. Freud termina o texto fazendo algumas ilações sobre a histeria que estaria ligada aos órgãos genitais, mas haveria algo mais primitivo, já que nas mulheres histéricas se daria uma regressão a um estado pré-genital onde o impulso masculino foi reprimido. Mas não aprofunda o que seria essa sexualidade masculina abandonada e essa relação com a histeria será parcial (se não totalmente) abandonada.

Frederico Celentano

“Atos obsessivos e práticas religiosas”

“Atos obsessivos e práticas religiosas”, Freud, Obras Psicológicas Completas, vol. IX.

  1. Freud procura aqui encontrar na semelhança entre os atos obsessivos e os cerimoniais religiosos uma compreensão interna da neurose obsessiva em suas diversas manifestações. O caráter cerimonial de ambos parece ter como função corrigir algo que está fora de ordem. Os arranjos devem ser realizados seguindo leis tácitas, e com o mesmo rigor. Além disso, os atos obsessivos, assim como os cerimoniais religiosos, podem vir acompanhados de proibições e impedimentos que somente são suspensos após a realização de um certo ritual.
  2. Dessa maneira, a semelhança parece óbvia: o que motiva os atos são os escrúpulos de consciência que qualquer negligencia acarreta. As diferenças são também óbvias: os atos neuróticos são individuais, enquanto os religiosos são estereotipados e possuem um significado social, cultural. O ato obsessivo tem uma significação individual, como se fora uma religião particular.
  3. Mas, há um traço comum entre esses dois funcionamentos: embora haja um sentido (social e particular) em ambos os casos, tanto o doente como o piedoso os realizam sem consciência de seu significado profundo. (Há, portanto, uma entrega ao gozo do Outro, como se poderia dizer no jargão lacaniano). O que o doente e o piedoso experimentam é um profundo sentimento de culpa ou um sentimento inconsciente de culpa.
  4. Esse sentimento de culpa tem a ver com uma repetição constante de uma representação, associada a uma pulsão e reprimida. Da mesma forma que a pulsão é constante, o sentimento de ansiedade também o é e somente pode ser aplacado pela repetição dos rituais compensatórios. O cerimonial surge como uma defesa ou como uma medida protetora (eu diria uma medida retificadora) contra a natureza pecadora do piedoso.
  5. O ponto de encontro entre o presente texto e o imediatamente anterior está na compreensão da origem do ato neurótico obsessivo, como fazendo parte da repressão de um impulso presente na constituição do sujeito, que pôde se expressar em algum momento na infância, sucumbindo à repressão posteriormente. Cria-se no curso desse processo uma consciência especial contra os impulsos primevos. Ela atua como uma formação reativa que se sente constantemente ameaçada pela pulsão advinda do inconsciente.  Na neurose obsessiva há sempre a ameaça do fracasso, instaurando um conflito interminável.
  6. Quando as medidas de proteção se tornam como ineficazes, surgem as proibições que substituem os atos obsessivos “assim como as fobias evitam os ataques histéricos”.  Dessa maneira, o cerimonial aparece como um conjunto de condições para que um ato não seja considerado como “pecaminoso” tanto na neurose como nos rituais religiosos. Esses cerimoniais e proibições são portanto a maneira que o psiquismo encontra para conciliar forças antagônicas.
  7. “A formação de uma religião parece basear-se igualmente na supressão, na renúncia de certos impulsos instituais. Entretanto, esses impulsos não são componentes exclusivamente dos instintos sexuais (…): são instintos egoístas, socialmente perigosos.  Afinal, o sentimento de culpa resultante de uma tentação contínua e a ansiedade expectante sob a forma de temor da punição divina nos são familiares há mais tempo no campo da religião do que no da neurose.”
  8. Há na neurose obsessiva e nas práticas religiosas um deslocamento, como na formação dos sonhos, e que cria representações que visam sempre a restabelecer um equilíbrio original de valores. (São regressivas em ambos os casos: têm como referência um estado em que algo era permitido, mas também um estado anterior de equilíbrio de valores, perdido em um tempo mitológico ou mitologizado)
  9. “(…) podemos atrever-nos a considerar a neurose obsessiva como o correlato patológico da formação de uma religião (…). A renúncia progressiva aos instintos constitucionais, cuja ativação proporcionaria o prazer primário do ego, parece ser uma das bases do desenvolvimento da civilização humana”. (Ou seja, a capacidade de abdicar, de se devotar, de adiar a realização de um desejo, em prol de algo maior, da civilização ou da cultura).
  10. Interessante a última nota de Freud nesse texto: afirma que nas religiões antigas, as iniquidades eram abandonadas à divindade e muitas vezes cometidas em nome dela”. Era assim o meio pelo qual o homem podia se libertar de seus instintos. Ao homem, que não é divino, são vedados certos comportamentos permitidos à divindade.

Frederico Celentano

“Caráter e Erotismo Anal”

“Caráter e Erotismo Anal”; Freud, Obras Psicológicas Completas, vol. IX.

  1. Freud faz considerações muito específicas sobre a relação entre a formação de traços de caráter (que por sinal ele não define no texto) e a relação entre uma função corporal específica (a defecação), o órgão nela envolvido (o ânus), a pulsão sexual que emerge dessa ou se representa nessa relação e, por fim, os destinos que podem ter essa relação:  prolongamentos de práticas, sublimação ou aparecimento de formações reativas.
  2. Interessante notar o quanto, nessa teoria, o caráter (algo que seria praticamente imutável) está associado à noção de complexo (conjunto de representações que formam cadeias associativas que orientam o comportamento face a determinadas situações).
  3. O Interesse do texto está realmente nas relações simbólicas que se podem construir a partir da interpretação de alguns atributos de caráter e sua associação com a história libidinal do indivíduo. (Particularmente, acredito que as associações feitas por Freud são excessivamente denotativas, mas tomando-as como insights e compreendendo sua estrutura, abre-se a possibilidade de realizar outras associações que aparecem no curso de uma análise).
  4. Freud identifica pessoas ordeiras, parcimoniosas e obstinadas com um complexo surgido na infância em indivíduos que tiveram dificuldade em superar sua incontinência fecal e/ou indivíduos que se recusavam a esvaziar os intestinos quando bebês (estamos falando da pré-fase de latência sexual, antes dos cinco anos).  Muitas dessas pessoas também relembram atos indecorosos com as fezes que, como veremos, em textos posteriores, Freud associa a uma dádiva, à criação de algo a partir do seu próprio corpo.
  5. O raciocínio de Freud parte da constatação que para tais indivíduos há um caráter erógeno  na zona anal. Quando uma zona erógena exerce sua força sobre o comportamento do homem, mobilizando uma pulsão, parte desta pode ser utilizada na sexualidade, mas parte pode ser defletida para outras atividades (sublimação) e parte pode, ainda, ser recalcada (por sentimentos incutidos e de pudor e vergonha) e dar origem a formações reativas (formações que realizam a pulsão e o desejo por outros meios, às vezes patológicos, como nas neuroses obsessivas).
  6. Nesse texto, Freud infere que o caráter que gera um indivíduo focado na limpeza, na ordem e na fidedignidade é uma formação reativa ao perturbador interesse pela imundice.
  7. (O indivíduo, que sente prazer em defecar e considera suas fezes uma criação com valor, confrontado com as forças civilizatórias repressoras, realiza uma operação psíquica contrária renegando aquilo a que conferia valor e transferindo a sua energia para atos opostos que realizam a pulsão original. Dentre esses atos ou comportamentos, está também o apego ao dinheiro. Aqui Freud faz uma série de considerações culturais sobre a relação entre o ouro e excremento: ouro do diabo que se transforma em excremento, o defecador de ducados, etc. Para mim, a interpretação simbólica é mais primitiva e mais em linha com a idéia da transformação de uma representação em seu oposto: o excremento é uma dádiva, algo que se cria “do nada”, o dinheiro se ganha pelo mérito ou reconhecimento ou, por meios escusos, nos casos em que a formação se associa a uma perversão. Freud volta a essa linha de pensamento quando afirma: “É possível que o contraste existente entre a substância mais preciosa (…) e a mais desprezível (…) tenha levado a essa identificação (…)”).
  8. (O desaparecimento de um impulso primitivo por transferência a um objetivo emergente é o processo psíquico que vale a pena reter a partir dessas colocações a meu ver).
  9. Importante ressaltar que Freud relaciona a formação do caráter com o desenvolvimento da sexualidade infantil, mas toma outro sentido quando inclui em seu pensamento a segunda tópica. A esse respeito, ver o resumo do texto o “Eu e o Isso” supra.

Frederico Celentano

“Fantasias Histéricas e sua relação com a bissexualidade” e e “Algumas Observações Gerais sobre os Ataques Histéricos”

“Fantasias Histéricas e sua relação com a bissexualidade” e e “Algumas Observações Gerais sobre os Ataques Histéricos”. Freud, Obras Psicológicas Completas, volume IX.

  1. Freud escreve esse texto já tendo desenvolvido os conceitos essenciais da psicanálise e após a publicação dos Três ensaios. No entanto, desde já, é importante notar que o conceito de bissexualidade somente ficará totalmente claro quando Freud evoluir em suas reflexões sobre o complexo de Édipo.
  2. Aqui, Freud expõe inicialmente um mecanismo conhecido de todo ser humano: sua habilidade ao devaneio. A se colocar numa situação que satisfaça um desejo, através de uma fantasia. Essas fantasias podem ser conscientes, mas podem também se tornar inconscientes e, nesse caso, tornarem-se patogênicas.
  3. Fantasias inconscientes que assim se tornaram pela repressão são particularmente interessantes, já que pelas cadeias associativas podem derivar de experiências conscientes atuais, mas com significados mais profundos. A fantasia e até mesmo o sintoma servem, como na masturbação, para dar satisfação ao sujeito. A diferença sendo que na masturbação há a evocação voluntária de uma fantasia e um ato voluntário de satisfação, o que não acontece num sintoma neurótico ou histérico.
  4. A autosatisfação é um atributo essencial em processos normais ou patogênicos. Se no início da vida o ser humano teria como objetivo a realização do prazer através de partes do seu corpo (sexualidade polimorfa), com o decorrer do desenvolvimento libidinal, emerge “a idéia plena do desejo pertencente à esfera do amor objetal”.  Assim ocorre quando o sujeito abandona a autosatisfação da masturbação ou encontra um objeto de satisfação sexual, ou, ainda, quando sublima suas pulsões. Se, no entanto, as fantasias inconscientes não encontram esse caminho, por haver a barreira da repressão, serão compelidas a se expressar por meio de um sonho, de um ato falto ou de um sintoma patológico. Os sintomas somáticos são investidos nas mesmas inervações que simbolizam a fantasia inconsciente reprimida.
  5. O Estudo da Histeria, segundo o autor, deve partir do sintoma para encontrar a fantasia inconsciente que a sustenta e, então, torná-la consciente (Freud ainda acredita na possibilidade de “tornar consciente o inconsciente”.)
  6. Interessante notar que, em muitos ataques histéricos, há uma teatralização dessas fantasias, a realização através de uma encenação (por exemplo de estupros ou ataques). Aqui vemos o quanto a histeria é marcada por uma intensa repressão e, portanto, por uma ambivalência fundamental no comportamento (a negação para Freud é uma das formas de expressão conscientes do reprimido e é muito presente na histeria).
  7. Também temos, aqui, uma pista de como a histeria tem direta conexão com a auto-satisfação e o reconhecimento do e pelo outro. Esse reconhecimento, assim como sua negação, é a realização do desejo e a manutenção da repressão que se tornou uma defesa.
  8. Freud, então, de maneira esquemática, mas extremamente clara, propõe oito diretrizes para o reconhecimento de um sintoma histérico, ao qual, ele acrescenta, no final, uma nona, talvez a mais interessante e que se constitui no verdadeiro objeto do artigo apresentado:
  • Os sintomas histéricos são símbolos mnêmicos de experiências traumáticas.
  • O sintomas são substitutos por conversão e retorno associativo dessas experiências (por isso, um pouco antes no texto, Freud intui a existência de um elemento sado-masoquista).
  • O sintoma é a expressão da realização de um desejo.
  • O sintoma é expressão de uma fantasia inconsciente que realiza o desejo.
  • Os sintomas histéricos estão a serviço da realização de um desejo de origem sexual.
  • Os sintomas histéricos correspondem a um modo de satisfação sexual da vida infantil. Destina-se a substituir uma satisfação auto-erótica praticada no passado e à qual o indivíduo renunciou.
  • O sintoma é a conciliação entre um impulso que deseja expressar um componente inconsciente da vida sexual e um impulso que tenta reprimi-lo.
  • O sintoma pode não ter uma representação sexual, mas tem uma significação sexual.
  • O sintoma expressa uma fantasia de conteúdo bissexual. Dessa maneira, o paciente é capaz de isolar um componente e tratá-lo, enquanto o outro permanece oculto ou absorve as associações do primeiro. (AMBIVALÊNCIA).
  1. (Essa discussão tem particular interesse nos processos de investimentos objetais e de identificação que sustentam a natureza bissexual de todo ser humano). (Ressalte-se que dizer “todo o ser humano tem uma natureza bissexual” ou que há “impulsos bissexuais” nada tem a ver com afirmar que todo ser humano deseja secretamente ter relações sexuais com ambos os sexos. Mais uma vez, a sexualidade tem a ver com um processo psíquico mais profundo de realização de desejos de múltiplas naturezas, de satisfação através de objetos e de identificação com aqueles que podem gerar o tipo de satisfação procurada. SÃO SÍMBOLOS DE FUNÇÕES).
  2. Como  o ataque histérico é a simbolização de fantasias inconscientes que foram reprimidas e ressurgem de maneira distorcida, elas devem ser submetidas à mesma interpretação que se faz, por exemplo, de um sonho.
  3. Normalmente, há várias fantasias condensadas num ataque (como num sonho), mas há elementos comuns que as sustentam e formam o núcleo representacional do sintoma.
  4. Há constantemente, nesses processos de condensação e nas conversões histéricas, a tentativa de realizar as atividades por meio de identificações múltiplas. Daí a ambivalência e as contradições e também as inversões cronológicas.
  5. O desencadeamento de uma ataque histérico pode ser compreendido da seguinte forma: há uma representação libidinalmente investida numa fantasia e reprimida. Quando um fato se associa à realização dessa fantasia ou quando a realidade se torna penosa demais (havendo uma fuga para a doença) ou quando o ataque serve de alerta ao objeto da fantasia (ganho secundário da doença) ou, ainda, quando por razões somáticas a energia libidinal se torna excessiva para o sistema, há um ataque histérico.
  6. O ciclo típico da histeria é o de satisfação auto-erótica, associação a um conteúdo ideativo, renúncia ao ato e repressão, manifestação da fantasia através do ataque. Repressão, malogro da repressão, retorno do reprimido (com eventual satisfação, ainda que parcial – ganho primário e secundário).
  7. O Histérico pode ter com frequência absences, ou seja, no curso do processo de satisfação pelo sintoma/ataque, toda a catexia de atenção é subitamente removida. Esse vazio amplia-se para tragar tudo aquilo que a instância repressora rejeita.
  8. Freud finaliza o texto, mais uma vez, com uma consideração, no mínimo curiosa, sobre a sexualidade feminina. Diz que, muitas vezes, a menina que apresenta características masculinas na pré-puberdade desenvolve o potencial para fantasias bissexuais e, para ser mulher, reprime seus desejos, tornando-se propensa ao desenvolvimento da histeria.

Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos.

“Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos”. Freud, Breuer, Obras psicológicas completas, vol. II.

  1. Este é um dos primeiros artigos psicanalíticos de Freud, embora a psicanálise ainda não tenha sido formulada. Freud dá crédito a várias pessoas, principalmente à escola francesa, a partir das observações feitas por Charcot (Delboeuf e Binet, Janet, etc.) Aqui, ele está preocupado em encontrar as causas dos fenômenos histéricos e descreve uma série de dificuldades e de conceitos para tentar explica-las, além de estabelecer um método para que os sintomas desapareçam. Como veremos mais adiante, Freud revisita os casos e percebe que os sintomas não são estáveis, mas isso será uma reflexão bem mais tardia.
  2. O ponto de partida é o seguinte: os fenômenos histéricos têm suas causas precipitantes em fatos ocorrido muitos anos antes do aparecimento do sintoma e no curso de uma investigação clínica é muito difícil encontrar esse ponto de partida já que o paciente ou se recusa a discutir a questão, ou não se recorda dela e não estabelece nenhum vínculo causal com o sintoma. A hipnose facilitaria o acesso a essa lembrança, mas não a retiraria da cadeia de associações que formam o sintoma.
  3. Haveria um fato externo, traumático, ocorrido, principalmente, na infância que provoca o sintoma. De qualquer forma, o sintoma aparece tendo relação simbólica com a causa precipitante (ex.: vômitos seguidos de uma repulsa moral, paralisias causadas por fato traumático associado a um adormecimento do braço durante um sonho, etc.). Portanto,  as causas são sempre traumas psíquicos acompanhados de afetos aflitivos.
  4. Mas o trauma seria apenas e tão somente um agente estranho que permanece no sistema nervoso, como um parasita. Essas representações atuariam por meio de elos causais intermediários e quando o paciente consegue chegar até o fato primevo e revive-o, o afeto transformado em sintoma poderia ser removido.
  5. Mas, por que, fatos vivenciados há tantos anos não sofreriam, como outras memórias, o desgaste do tempo? Aqui entram dois fatores importantes: um é a reação energética ao afeto que, se não ocorrida, fica represada ou reprimida. O afeto permanece, de alguma forma, vinculado à lembrança, mas encontra formas alternativas, simbólicas e, muitas vezes, patológicas de se manifestar. O afeto que não foi ab-reagido precisa encontrar uma reação adequada através da linguagem (da elaboração desse afeto). Mas Freud faz aqui uma consideração interessante. Lembranças de afetos não ab-reagidos podem ser trabalhados por processos de associação complexos em pessoas normais. Não é, portanto, preciso necessariamente que haja uma resposta imediata para que o afeto seja ab-reagido.
  6. Esse fato leva Freud e Breuer a uma importante conclusão: se as lembranças traumáticas permanecem com todo seu colorido afetivo, mas ausentes da consciência, o paciente a recalcou ou reprimiu intencionalmente (“intencionalmente” segundo a nota do editor quereria dizer “com motivação” e não direcionado por uma volição – eu tenho dúvidas como expus em outros resumos). Assim, de uma certa forma, o paciente cria uma segunda consciência não acessível à memória normal.
  7. A teoria até aqui somente trata de histeria traumáticas, advindas, portanto, de fatos traumáticos. Mas não haveria disposições internas?
  8. Até aqui, com algumas revisões importantes, o arcabouço da psicanálise parece estar em formação. No entanto, os autores fornecem uma explicação disposicional para a formação dessa segunda consciência que será profundamente revista por Freud. Segundo a teoria, haveria, como condição sine qua non, a disposição de certas pessoas em produzir estados hipnóides em que certas representações não podem ser elaboradas. Essas representações seriam, normalmente, muito intensas e estariam isoladas de qualquer comunicação associativa. Os estados hipnóides seriam o “terreno em que o afeto planta a lembrança patogênica”.  Permanece, no entanto, a questão: por que as associações patológicas surgidas nesse estado são tão estáveis e têm influência tão maior sobre os processos somáticos do que costumam ter outras representações?
  9. Os ataques histéricos são reações apropriadas ao afeto e expressão direta das lembranças. Nos estados hipnóides haveria uma cadeia de associações feitas através das representações recalcadas que criariam uma segunda consciência e é essa segunda consciência que determinaria a deflagração somática do sintoma. “Durante o ataque, o controle sobre toda a inervação somática passa para a consciência hipnóide. A consciência normal nem sempre é inteiramente recalcada. Ela pode perceber os fenômenos motores”, mas é incapaz de significá-los.
  10. Freud admite ter chegado aqui a uma compreensão dos mecanismos dos sintomas histéricos, mas não às suas causas internas (disposicionais). Só conseguiram tocar levemente no caso das histerias adquiridas. No entanto, afirma que a histeria é uma reação apropriada ao afeto ligado a uma representação não ab-reagida e que através da fala pode-se submeter essa representação a uma correção associativa e assim reintroduzi-la na consciência normal.

Frederico Celentano