Um esboço de psicanálise a partir do poético.

 

Um esboço de psicanálise a partir do poético.

O presente artigo  procura expor uma posicionamento sobre o campo psicanalítico. O que é, afinal, a psicanálise? O que se faz, ou melhor, o que se pode fazer na prática clínica? Qual seu alcance, quais seus limites? O que se pode interpretar e como?

Ao inserir o poético no campo psicanalítico, busco uma reflexão sobre o que constitui o domínio, as “terras” da psicanálise. Tomo partido por uma psicanálise não-estrutural ou não-estruturalista. Uma psicanálise onde o sujeito não é apenas sobredeterminado, servo de três mestres (supereu, isso e realidade); onde não há realidade, nem mesmo a psíquica, a ser desvelada; onde o sujeito, ao se deparar com suas pulsões, poderia se transformar por meio do exercício da narrativa[2], da palavra e da poesia, definida como metáfora viva. Mais arte, menos ciência. Não se trata, portanto, de analisar a literatura e, mais precisamente, o poético por intermédio da psicanálise, mas pensar a psicanálise a partir do poético. A partir da expansão das fronteiras do devaneio e do sonho.

Parto do princípio de que todo material percebido e registrado pela experiência pode ser reescrito a partir da escuta, do setting e do par transferência / contra-transferência, com especial atenção a esta última.

Reescrever é ressignificar e, ao mesmo tempo, transformar. Está para além do recordar, do repetir e até mesmo do elaborar (do perlaborar). Está no reconstruir as possibilidades imaginativas humanas. O psicanalista bem poderia fazer a seus analisandos o mesmo voto que o personagem-escritor, Ts’ui Pen de “O Jardim dos caminhos que se bifurcam” de Borges:

“Deixo aos vários futuros (não a todos) o meu jardim de caminhos que se bifurcam.”

Se é assim, o campo psicanalítico se constitui como o ambiente em que podem ser criadas novas estórias pessoais – não todas as estórias, como não são todos os futuros – mas as estórias possíveis a partir de um encontro entre analisando e analista.

“O inconsciente (é) o fato (de) que estamos condenados a repetir um passado de que não nos recordamos e a tomarmos como recordações o que jamais se repetirá em sua forma primeira. A literatura é o conjunto de escritos explicitamente ordenados sob o signo da ficção (…) que reelaboram esse passado agitado por secretas verdades e que se encontram diretamente submetidos à lei de seu desconhecimento. Ler a ficção com o olhar da psicanálise permite, ao mesmo tempo, oferecer aos textos uma outra dimensão e observar a escrita em sua gênese e em seu funcionamento.” (tradução livre).

Jean Bellemin-Noël, Psychanalyse et littérature, PUF.

E por que não inverter a proposta e “ler” as representações do analisando a partir da ficção? Por que a psicanálise não poderia se encontrar na bifurcação da interpretação do texto e de sua recriação?

Freud reconheceu, no desenvolvimento de seus conceitos, a impossibilidade de trazer à consciência o inconsciente, postulando, na seqüência, o princípio da livre associação e seu correlato, a atenção flutuante que seriam capazes, na melhor das hipóteses, de trazer à luz representantes psíquicos de representações recalcadas. Dessa forma, haveria algo para sempre perdido, mas capaz de produzir ficções, narrativas, textos. Não seria exatamente esse o material de uma análise? A questão não estaria em como interpretar e ressignificar as metáforas?

É aqui onde entraria a escuta psicanalítica. No romance de Ts’ui Pei, os capítulos seguintes não seguem a lógica espaço-temporal dos anteriores. Na análise, os capítulos seguintes poderiam ser aqueles criados pelas possibilidades abertas na escuta analítica, nas bifurcações dos caminhos por ela engendrada. A escuta, entendida como presença física e testemunho, como acolhimento de uma angústia e esvaziamento dos sentidos para que um novo possa advir. Desconstruções que poderiam levar o analisando a novas bifurcações, a novas possibilidades narrativas, o analista a uma expansão de sua capacidade de testemunhar e ambos a reescrever os textos surgidos da própria relação analítica.

E se a escuta propõe novas bifurcações, o setting poderia ser o labirinto que oculta na espacialidade, “(…) infinitas séries de tempos, uma rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos”. (J.L. Borges, “O jardim dos caminhos que se Bifurcam” Ficções, Cia das Letras).

Sendo assim, não há realidade psíquica, mas um texto em constante transformação que representa um algo recalcado e perdido.

“Our revels now are ended. These our actors,

As I foretold you, were all spirits, and

Are melted into air, into thin air:

And like the baseless fabric of this vision,

The cloud-capp’d tow’rs, the gorgeous palaces,

The solemn temples, the great globe itself,

Yea, all which it inherit, shall dissolve,

And, like this insubstantial pageant faded,

Leave not a rack behind. We are such stuff

As dreams are made on; and our little life

Is rounded with a sleep.”

Shakespeare – The Tempest, Act 4, scene 1

A realidade e o próprio sujeito como construção de nossas mentes está longe de ser algo novo para a literatura. Shakespeare não só reconhece a ilusão das coisas, o tecido insubstancial do qual tudo é feito, mas que a essência do humano é feita dessa mesma “coisa” sobre a qual se constroem os sonhos, sendo que nossas pequenas vidas estão envoltas por um sono. Sendo assim, nada há de real, nem mesmo a “realidade psíquica”, pois o homem é, ele mesmo, sonho, criaturas de uma ilusão.

O que um analisando nos traz, além da ficção? Sua existência ao ocupar esse lugar, assim como a do analista, nada mais é do que narrativa. E se suas produções estão mediadas pelo recalcado, por aquilo que não tem juízo, nem valor, elas não têm consistência, não são objetos.

Os representantes psíquicos poderiam, assim, ser ressignificado, em princípio, ad infinitum. No entanto, no caso de uma relação analítica, essa ressignificação está balizada dentro dos limites da capacidade imaginativa da dupla analista/analisando, mas seria possível, mesmo que de maneira limitada, que novas reverberações se produzissem nos traços mnêmicos deixados pela experiência. Em sendo insubstancial essa estrutura psíquica, como é a própria realidade, os ecos psíquicos de estórias recontadas também poderiam reconfigurar a forma pela qual se dá o retorno do recalcado.

Um parênteses importante. Há de se convir que o termo “realidade psíquica” em Freud encerra algo de contraditório, pois o  psíquico, o percebido e registrado no psiquismo, mesmo que com “coerência e resistência comparáveis à realidade material”[3], não se coaduna com qualquer realidade ou realização. Mas, o emprego do termo não é aleatório.  Freud o utilizou em diversas ocasiões para designar uma visão positiva do trabalho psicanalítico que poderia ser realizado em bases ou a partir de “métodos científicos” de observação e experimentação de um fato ou de um objeto: a realidade psíquica. Isso porque se, para o indivíduo, essas realidades psíquicas são tão substanciais quanto as realidades materiais, elas poderiam ser conhecidas pelo analista através do discurso. O próprio discurso se transforma em objeto.

Mas, Shakespeare e Borges nos ensinam algo mais profundo: o que o humano pode conhecer é apenas o sonho de sua própria existência. Se isso lhe retira a prerrogativa de conhecer o real, confere-lhe o poder de contar suas estórias de inúmeras maneiras. O analista não tem, assim, em sua frente um objeto de análise, mas um sujeito, como ele próprio, feito de ilusão.

Freud reconhecia nos escritores essa sabedoria:

“E os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o ceú e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência.”

S. Freud – Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen, Obras Completas, tom IX, Imago, 2006, p. 20.

Mas, aqui, propõe-se uma visão mais radical, pois questiono a possibilidade de um conhecimento positivo, por um sujeito, sobre algo que, por essência e natureza, não lhe é exterior. O mundo psíquico conhecido pelo próprio analisando é ficção e a narrativa recebida pelo analista, uma obra aberta[4], cujos significados são inúmeros e as possibilidades de ressignificação infinitas.

Quais seriam as conseqüências dessa visão para a teoria e prática analíticas e como se inscreve a obra de um autor na produção de um saber psicanalítico?

É em Freud que podemos encontrar um esboço de resposta:

“Nosso processo consiste na observação consciente de processos mentais anormais em outras pessoas, com o objetivo de poder deduzir e mostrar suas leis. Sem dúvida o romancista procede de forma diversa. Dirige sua atenção para o inconsciente de seu próprio psiquismo, auscultando suas possíveis manifestações, e expressando-as através da arte, em vez de suprimi-las por uma crítica consciente. Desse modo, experimenta a partir de si mesmo o que aprendemos de outros: as leis a que as atividades do inconsciente devem obedecer. Mas ele não precisa expor essas leis, nem dar-se claramente conta delas; como resultado da tolerância de sua inteligência, elas se incorporam à sua criação.”

S. Freud – Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen, Obras Completas, tom IX, Imago, 2006, p. 83.

Mas, o que Freud reconhece como próprio ao artista, ele o nega ao psicanalista. Evidentemente, isso tem uma direta ligação com a posição que Freud procurava ocupar e a legitimação da psicanálise como ciência. No entanto, a leitura desse trecho e da sua análise da “Gradiva de Jensen” como um todo, permite formular vários problemas: Por que as produções de uma análise não poderiam ser incorporadas a um ato de criação analítica onde os significados possíveis são transformações[5] que têm um conteúdo manifesto, comunicável, reconhecido intersubjetivamente e ressiginifcado, mas que opera no inconsciente além da escuta e dos discursos?

Por certo, as idéias, os produtos de alguma transformação, sejam elas teorias ou representações produzidas pela dupla analista/analisando, permitem que certas invariâncias[6] surjam e a comunicação de um saber se efetue. Mas a prática psicanalítica faz pensar que as transformações, antes de emergirem como representações, operam na outra cena e são impossíveis de comunicar. Apenas temos o conhecimento delas no contar e no reposicionamento constante de analista e analisando na relação transferência / contra-transferência.

A visão de uma psicanálise como criação narrativa teria por efeito um manejo particular da contra-transferência, pois o que foi mobilizado no analista, se reconhecido e colocado no contexto das elaborações do analisando poderia se tornar elemento discursivo valioso para a produção deste e permitiria a expansão da escuta daquele. Confinar os sentimentos inconscientes do analista, gerados pelo analisando, a uma questão individual daquele, que deve ser tratada na sua análise pessoal é, apenas, olhar um lado da mesma moeda. Ao contrário, reconhecer e trabalhar a contra-transferência no setting é procurar compreender o que aquela dupla se torna capaz de elaborar para que as questões do analisando possam ser abordadas.

Bibliografia.

S. Freud, Obras Completas, Imago

– “A interpretação dos sonhos (II)”, Volume VII.

– “Delírios na Gradiva de Jensen”, Volume XIX.

– “Artigos sobre técnica”, Volume VIII.

– “Além do princípio de prazer”, Volume XVIII.

– “O Eu e o Isso”, Volume XIX

– “Novas Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise”, Volume XXII.

S. Freud, Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente

– “Pulsões e destinos da pulsão”, Volume I.

– “O problema econômico do masoquismo”, Volume III

– “Formulações sobre os Dois Princípios do Acontecere Psíquico”, Volume I.

– “ O Recalque”, Volume I.

– “O Inconsciente”, Volume II.

– “Luto e melancolia”, Volume II.

J.L. Borges,

– Ficções, “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam”, Cia das Letras.

– “História da Eternidade”, Cia das Letras.

C. Baudelaire, Poesia e Prosa, Nova Aguilar

– “As Flores do Mal”, tradução Ivan Junqueira.

– “Projéteis”, tradução Ivo Barroso.

-“Crítica Literária”, “O Pintor da Vida Moderna”, tradução Ivo Barroso.

P. Emmanuel, “Baudelaire, la femme et Dieu”, Seuil.

J.P. Sartre, “Baudelaire”, Foilo Essais.

J.B. Baronian, “Baudelaire”, Folio Biographies.

J. Guisburg, “O Romantismo”, Perspectiva.

J. Bellemin-Noël, Psychanalyse et littérature”, PUF.

W.R.Bion, Transformações, Imago.


[1] Em primeiro lugar, um interesse pessoal, tardio, mas crescente pela literatura de ficção e poesia e, em segundo lugar, uma formação anterior em ciências políticas e relações internacionais, orientado por uma visão teórica construcionista. Nesse percurso, tanto a obra de Foucault, lido a partir de uma grade de entendimento crítica e não somente estruturalista, quanto a obra do politólogo americano Murray Edelman e dos teóricos das relações internacionais Alexander Wendt e  John Ruggie foram essenciais.

[2] Numa possível interpretação do seminário 22 de Lacan, se o Real está fora das categorias de significação, o que permitiria a existência do corpo, do imaginário, nesse Real seria o Simbólico, mas não um Simbólico determinado por sub ou super estruturas, pelos imperativos do Isso, ou pelos limites do Supereu e da cultura. Um Simbólico mais plástico, composto de representações verbais e, principalmente, não verbais, capazes de se deslocar e de se condensar no diálogo de inconscientes, nos jogos entre associações livres e atenções flutuantes.

[3] S. Freud, Conferências introdutórias sobre a psicanálise, Obras Completas, vol. XV, Imago

[4]  U. Eco, A obra aberta, editora Perspectiva.

[5] W.R.Bion, Transformações, Imago.

[6] L.C. Figueiredo, Bion em nove lições, capítulo 1, Escuta.