Psicanálise

Uma visão sobre as teorias e as práticas psicanalíticas

O inconsciente e o gozo

O Gozo na leitura de J. –D. Nasio

Introdução.

Qual seria o intuito de fazer um resumo de um resumo?

Em primeiro lugar, acredito que o conhecimento pode ser adquirido por fontes secundárias e não acredito que resumir seja um processo acrítico, onde se aceita o que tal autor diz de tal outro autor. Pode chegar o momento de ler um autor e comparar uma leitura pessoal com a leitura de seus intérpretes. Mas isso não é, em minha opinião uma necessidade. Aliás ler um livro ou um autor é mais um encontro do que uma necessidade.

Em segundo lugar, acredito que fazer a síntese dos pensamentos de Nasio sobre Lacan e alinhá-los aos meus próprios é um exercício conceitual válido. Meu objeto é a visão de Nasio sobre um conceito central da teoria lacaniana (e não a teoria lacaniana em si). O conceito em questão é o de gozo.

Por fim, essa síntese crítica vem também do encontro com esse conceito, tal como descrito por Nasio, que me parece útil para a minha clínica. Sendo assim, pouco importa (agora) se Nasio é ou não fiel a Lacan, etc., etc.

Goostaria, aqui, de organizar as minhas idéias e as compartilhar.

O inconsciente e o gozo.

Inconsciente e gozo são conceitos que diferem por sua natureza em relação à obra de Freud. E aqui, remeto a questão a Freud pois um (o inconsciente) é um conceito fundador no pensamento Freudiano e o outro (o gozo) é um conceito desenvolvido por Lacan a partir de uma leitura muito particular da obra de Freud.

Pos bem, na obra de Lacan, a cada um desses conceitos (inconsciente e gozo) estão conectados um axioma: “O inconsciente é estruturado como uma linguagem” e “Não existe relação sexual”. A promessa de Nasio, nesse estudo, é a de que, ao submeter essas proposições à clínica, haveria uma mudança essencial da escuta e da própria ética do analista. Vejamos o porquê.

O Inconsciente.

O analista tem inicialmente acesso a que? Ao sintoma, a um evento na análise, a uma imagem, um signo através da qual se dá uma experiência analítica e toda experiência é um momento privilegiado, perceptível, pontual e fugaz. É o momento em que o paciente faz e diz e não percebe o que fez ou disse. É o momento em que, confrontado ao seu ato e sua fala, desconhece as razões que o fizeram atuar e dizer. É o momento em que ele hesita, em que a linguagem tropeça.

Lembremos que, para Freud, o sintoma é um compromisso entre desejo recalcado inconsciente e sua realização. O problema é que o sintoma não satisfaz o desejo, ele perpetua a falta e essa falta somente se faz presente na falha, quando a palavra escapa, quando o ato surpreende ou seja, quando o que está recalcado emerge como um não-evento ou um não-sentido.

O sintoma causa sofrimento por essa aura de non-sense que reveste a fala do paciente. Aqui um pequeno parênteses meu sobre essa questão: há, em todos nós analistas, uma tentação muito presente em interpretar a fala do paciente. Dar sentido a ela, ou conduzi-lo no processo que dará sentido a ela. Há um desejo nosso. Recentemente, ouvi de uma colega o relato sobre um caso onde sua paciente dizia que não sabia se responderia a um contato de um ex-namorado que a havia abandonado por e-mail, após eles terem alugado um apartamento em que iriam morar juntos. A paciente não sabia o que fazer. Levada a questão ao seu supervisor, disse ele à minha colega, você poderia ter sido mais assertiva e perguntado “o que esse sujeito quer com você?” Uma pergunta carregada de um tom paterno, de censura, de corte. Acredito que esse tipo de intervenção pode ter uma função, mas há que se considerar a falha, o não saber da paciente como sintoma, esse evento privilegiado em que, para ela, tudo escapa e foge ao controle; em que, portanto, introduzir uma interpretação pode retirar a possibilidade de elaboração.

Voltando a Nasio, o sintoma também são as teorias que o analisando irá formular para compreender o seu mal-estar. Por que surge, por exemplo, a dúvida nessa paciente? Ao psicanalista cabe favorecer a elaboração, cuja possibilidade se abre pela surpresa e pelo desconforto ou desconserto. Nesse processo, o analista vai se tornar o destinatário do sintoma. Aqui, então, talvez, uma interpretação possa emergir.

O grande desafio de um analista é, primeiro tornar-se o destinatário, para, depois, tornar-se a causa do sintoma do paciente e, então, ter estofo para sustentar essa posição e se tornar o sujeito-suposto-saber. O sujeito-suposto-sabe não é somente detentor de um conhecimento sobre o paciente, mas, principalmente, ele está na origem de seu sofrimento ou de qualquer acontecimento inesperado, sem sentido. Aqui, devo, mais uma vez, colocar um parênteses meu: o sujeito-suposto-saber é parte do problema porque ele é parte da solução. Como nos ensina Murray Edelman, politólogo construcionista, as soluções precedem os problemas. Ou melhor, os problemas são o sub-produto das soluções que legitimam a posição de um agente, no caso, o sujeito-suposto-saber. Sendo assim, o analista só está legitimado em sua posição se for a origem do problema para o qual supostamente detém a solução. Ainda nesse meu rápido parênteses gostaria de especificar que essa não é a única forma de encarar a relação analítica. Acredito que há um caminho mais perigoso (para o analista) que é o de adoecer com o paciente, que é deixar o paciente falar não ao sujeito-suposto-saber, mas à parte doente em nós analistas, criada pelas projeções do analisando e que fazem eco em nosso inconsciente, em nosso ser neurótico, histérico ou psicótico. Mas, voltemos, mais uma vez a Nasio.

Um outro aspecto importante do sintoma é o de conter uma face de signo e uma face de significante.  Signo é aquilo que representa algo para alguém, é o que o analista se torna, por exemplo: o Outro do sintoma e, depois, a causa do sintoma.  É um representamen, ou seja, algo que, para alguém, faz as vezes de alguma coisa, em alguma relação a a algum título. Cria, portanto, na mente do destinatário um signo equivalente ou, pelo menos, derivado. O signo favorece, assim, a instalação da transferência.

Já o significante é uma categoria formal, é desprovido de sentido, é involuntário, é perceptível mas ligado a um conjunto de significantes imperceptíveis (um significante somente o é para outros significantes). O sintoma tem, assim, a face de um significante, como o lapso, o ato, o gesto, o silêncio ou a interpretação. A principal característica de um significante é que ele se repete, apesar das tentativas de dominá-lo. O significante, assim conceituado, se distingue da realidade concreta de um sintoma, de sua expressão (ex.: fobia de pontes). Pode-se significar esse significante, mas ele só é significante porque retorna com a força de um acontecimento involuntário, desprovido de sentido e pronto para se repetir (S1). Por isso, o sintoma, significante, está no que nos escapa, na falha.

O sintoma, significante, faz o paciente sofrer, mas o informa sobre algo pertinente da sua história. É a força motriz questionadora. É revelador sob um novo prisma. O significante quando aparece, suscita novas perguntas, permite que algo seja trazido à luz. A pergunta relevante: “Qual é, pois, essa combinação de significantes que, ultrapassando a minha vontade, organiza a repetição dos meus sintomas e garante que um deles nasça na hora exata, para que eu saiba que a minha infelicidade decorre exclusivamente do meu desejo?” Não é a pergunta do por que faço isso – pergunta do signo. É a pergunta do como faço isso, em que condições meu desejo se desnuda. Tomar o sofrimento pela causa é fazer dele um signo; tomar o sofrimento como algo surpreendente e inusitado é reconhece-lo como um significante.

Quem coloca esse significante como um saber, na hora exata, é o inconsciente. Um saber inconsciente emerge através do significante que se repete. “O inconsciente é o saber da repetição”. O inconsciente movimenta a roda dos significantes para que eles ocupem em algum momento o lugar do significante manifesto, do S1. Do Um. “O inconsciente assegura a renovação do lugar do Um.” É um processo constantemente ativo que não para de exteriorizar significantes.

Aqui, até onde eu compreendo, entra um ponto extremamente importante para Nasio. Para ele o inconsciente faz o significante circular, não somente dentro do psiquismo do analisando, ele pode aparecer em todos os sujeitos com quem o indivíduo tenha uma relação transferencial. Para Nasio a estrutura não pertence a ninguém, ela nem mesmo existe em si, como não há inconsciente em si. “A interpretação repete hoje, no dito do analista, um sintoma que se manifestou no dito do analisando” (…). Ou melhor ainda: “A interpretação atualiza o inconsciente da análise.”

O inconsciente como linguagem é uma trama de significantes constantemente atualizados, é uma cadeia virtual de dizeres (atos, acontecimentos) que sabe atualizar-se num dito oportuno. E se o inconsciente se atualiza em ditos, ele ata, liga, cria pontes entre seres. É linguagem. O inconsciente não é individual, nem coletivo. Ele se cria no entre-dois, como um entidade que atravessa os atores da análise.

O gozo.

O conceito fundamental sobre o gozo se enuncia a partir do axioma “Não existe relação sexual”. Para tanto, Nasio, retoma a linha de argumentação sobre o sintoma. Sintoma é um signo, uma interpretação do paciente que faz surgir uma imagem no analista; ele se transforma, no cursos de uma análise, em significante que surpreende e se impõe sem qualquer intencionalidade, mas o sintoma também é sentimento de dor, um sentimento penoso que é percebido pelo Eu. No entanto, para o inconsciente, o sintoma procura uma satisfação. A satisfação do desejo recalcado ou, pelo menos, o adiamento de um desprazer que fará com que esse sintoma se repita.

Então, o que é o gozo e quais suas diferente imagens? Em primeiro lugar, gozo não é prazer orgástico. O ser humano é perpassado por uma aspiração de uma realização absoluta do prazer, da felicidade, metaforizado por um prazer sexual absoluto proibido pelo incesto. Essa aspiração é o desejo (significante da falta). A realização do desejo é refreada pelo recalcamento, o que gera uma tensão no aparelho psíquico. O sintoma, o ato falho, as lembranças e sonhos procuram uma descarga parcial dessa energia, o resto permanece represado como excesso que superexcita as zonas as erógenas (eu diria o corpo, lembrando a importância da história libidinal do sujeito e a noção de fixação). Um terceiro destino para essas descargas, destino absolutamente hipotético e ideal, seria a de uma descarga total de energia (o que equivaleria a trazer os níveis de energia a zero – ou seja, ao estado inorgânico).

Pois bem, os três destinos, acima relatados, segundo Nasio, corresponderiam aos três tipos de gozo em Lacan. O gozo fálico (descarga parcial). Fálico pois o que impõe o limite ao gozar é a função falica, uma comporta que regula o que sai e o que fica em termos de energia psíquica. Essa função limita o acesso do gozo ao exterior, limita o acesso aos acontecimentos inesperados, às fantasias, às produções externas. Já a energia que permanece no sistema psíquico corresponde ao mais-gozar. O “mais” reflete o excedente de energia que aumenta a tensão psíquica. Cria, portanto, um estado permanente de erotogenia. Por fim, a terceira categoria seria a do gozo do Outro, estado ideal em que a tensão seria totalmente descarregada sem qualquer limite. É a descarga que o sujeito deseja e supõe no Outro, um ser ideal. Para um neurótico obsessivo, esse horizonte inalcançável é a morte, a catástrofe, a compulsão à repetição; para o histérico, é um oceano de loucura, de perda de controle.

Aqui Nasio retoma um pouco a questão edipiana, o que demanda alguns complementos. Para a criança, a mãe (ou o que representa a função materna) nos primeiros anos de vida, proporciona um sentimento de completude que é terminada, pelo colapso narcísico, pelo fim do estádio do espelho. Bem, o Edipo nada mais é do que uma idealização de um gozo pleno, através da figura mítica do incesto, em que a criança vislumbra um gozo absoluto. A maneira como as imagens idealizadas de gozo absoluto e como o indivíduo lida com as limitações que encontra em sua  história libidinal é o que vai determinar os processos (ou as estruturas para um lacaniano) psíquicos e as formas de elaboração das frustrações.

Nesse sentido, a psicanálise retém a miragem fundamental do gozo absoluto numa relação incestuosa. Um gozo absoluto que não pode existir. É aqui onde começa e termina o saber psicanalítico. Pois o gozo absoluto é o real incognoscível. Trata-se de um gozo sexual, não no sentido de um gozo genital, mas um gozo perfeito experimentado pelo (através do) Outro, acompanhado de uma fantasia de completude e onipotência. O Outro pode ser qualquer personagem mítica, diga-se de passagem (não só a mãe). Dessa maneira, da mesma forma que a criança sonha com a relação sexual perfeita, a psicanálise reconhece que tal relação sexual não existe, pois esse Outro não existe. Esse lugar do incesto impossível é também o lugar do saber impossível, pois onde a criança supõe o mito do gozo do Outro, a psicanálise sabe a impossibilidade dessa realização, mas não pode formulá-la. Impossível escrevê-lo com letras, signos que digam qual seria a sua natureza. O gozo é o lugar em que não há significantes também. É nesse sentido que se deve entender “não existe relação sexual” – não existe relação simbólica entre um suposto significante de gozo masculino e feminino, imaginados como gozo absoluto. Não existe relação entre dois significantes ausentes. A rigor, segundo Nasio, não há que se falar também em significantes para o gozo relativo, pois o gozo não tem significante. Aqui eu me permito uma discordância, ainda que provisória e, talvez, prematura: se há limites, se há entrada num universo simbólico, então o gozo, se não tem um significante, produz um significante sobre o que ele é. Como se vê, isso nada tem a ver com o encontro erótico entre os órgãos sexuais de parceiros. Nesse sentido, Nasio admite que há significantes que possam circunscrever as zonas locais em que o corpo goza. A psicanálise reconhece apenas as fronteiras significantes que delimitam as regiões do corpo que são focos de gozo.

Nasio faz, então, uma digressão sobre o conceito de falo ou de função fálica. Função limitadora, ela baliza o gozo, o fluxo de energias orientado para um objetivo. O falo marca a origem do gozo, os obstáculos e suas exteriorizações (sintoma, fantasia, etc.). A função fálica, limitadora estabelece uma fronteira, além da qual está o mundo idealizado e mitificado do gozo absoluto. E por que essa função está marcada por um referente masculino? Por que a psicanálise partiu da idéia de castração para chegar a esse conceito (e por razões históricas e culturais à época em que a psicanálise se instituiu). No entanto, aqui o falo é uma metáfora. A psicanálise lacaniana se refere, por exemplo, à função paterna e materna e não à mãe e o pai na constituição do Édipo e nos mecanismos de castração. Da mesma forma, refere-se ao masculino e ao feminino por sua função simbólica.

Nasio, ao final dessa primeira lição faz uma retificação: Lacan não considerava o gozo como uma entidade energética. Lacan dizia que a energia não é uma substância, mas uma entidade numérica. É a cifra de uma constância. “Mas o gozo seria uma energia se, seguindo a metáfora freudiana, o considerássemos um impulso, nascido numa zona erógena do corpo, tendente a um objetivo, que esbarra em obstáculos, abre saídas e se acumula.”

Aqui eu me permito um questionamento: de fato, tudo o que Nasio nos disse acima está em desacordo com essa sua colocação. O gozo é a descarga ou a retenção ou a idealização da descarga dessa energia. Não é a energia em si. Enfim, ainda resta muito a  refletir sobre o conceito de gozo, mas para “dessubstancializá-lo” melhor seria falar em um verbo – “gozar” –  no lugar do substantivo “gozo”.

As relações entre inconsciente e gozo. 

O elemento faltante na cadeia de singnificantes que compõem o inconsciente é o gozo. Não há representação do gozo, mas há um lugar, o do furo. O gozo limitado é aquele que tem bordas e nelas aparecem significantes. Se pensarmos no gozo ilimitado, não há borda, é difuso, sem vínculo com qualquer estrutura particular. É identificado pelo sujeito como uma miragem, como um fantasma. O sintoma e a fantasia são os dois recursos do neurótico para se opor ao gozo desmedido. O sintoma é o gozo fálico e a fantasia, o mais-gozar. No histérico, por exemplo, a fantasia faz com que o gozo escape a ele incessantemente. Aqui um ponto meu sobre a práxis analítica: não há que se esclarecer em análise a natureza e as consequências dessa fantasia. Ela sustenta uma posição. O importante é que a fantasia apareça como tal, como subterfúgio para impedir um gozo pleno, esse impossível, e que a energia psíquica possa circular a partir dessa fantasia e não ficar ali aprisionada. Nesse sentido podemos entender que o desejo é uma defesa contra o gozo.

“Assim, o gozo do Outro é um sonho paradisíaco que se oferece ao neurótico de maneiras diversificadas e contraditórias: primeiro, é um sonho que lhe é caro e ao qual ele aspira; depois é um sonho que ele sabe irrealizável, quimérico e fora de seu alcance; e, por fim, é acima de tudo um sonho que ele sabe que se, por azar ou por felicidade viesse um dia a se realizar, seu ser ficaria em perigo.”

“Onde fracassa a fala, aparece o gozo”

Somos seres falantes (grau empírico e comportamental, não-analítico), somos seres habitados pela fala (somos expostos à linguagem) e somos seres ultrapassados pela fala (quando um dito se diz fora de mim, à minha revelia). Nessa última instância, o corpo é afetado. O corpo como gozo, como instrumento de mediação de energias psíquicas, sendo que o corpo orgânico seria apenas uma caixa de ressonância. Sendo assim, nosso corpo está marcado pela linguagem. Quando o corpo é atingido por uma fala que nos ultrapassa, aparece o furo, ele é um corpo que goza. Parte da energia é descarregada, parte é armazenada e tensiona o aparelho psíquico (que é corpo).

A fala fracassa porque o desejo fracassa e esse insucesso tem direta relação com o fato de estarmos imersos no simbólico, nos mil e um sentidos. Até a satisfação plena se estende um campo com mil labirintos. O desejo falado esbarra numa multidão de equívocos e de polissemias.  A análise é um caminho limitado, mas infinito, pois desdobramos esse desejo falado, descortinando-o e expandimos as fronteiras do possível. Uma vez dita a palavra, abre-se o caminho para a satisfação, até esbarrarmos naquele dito, ato, sonho que nos surpreende novamente e que faz circular o carrossel de significantes do inconsciente.

Nesse sentido, é preciso fazer uma distinção clara entre o gozo e o prazer. O prazer é descarga, no gozo, há sempre um aumento de tensão no aparelho psíquico, porque ele está ligado a um ato que involuntário que propõe uma descarga limitada de energia, mas que, ao mesmo, tempo deixa um resíduo que provocará a repetição. Por isso, e aqui faço um adendo, a noção de gozo está intimamente ligada à pulsão de morte, à repetição (ou compulsão à repetição).  No gozo se vivencia uma tensão quase intolerável, que é misto de estranheza e embriaguez.  O gozo é o estado máximo em que o corpo é posto à prova. O corpo é arrastado, levado. Experimenta-se o vago sentimento de uma força que nos arrasta para a atuação. Nos atos do gozo, o sujeito é apenas corpo. E é importante notar que o sujeito não goza, porque o gozo não tem significante (o sujeito sim), mas alguma coisa goza em nós, fora de nós. Portanto, o gozo é o motor da análise.

“Segundo Freud, as variações de tensão energética no âmago do isso são percebidas pelo próprio Isso. Em vez de dizer, como Freud, que o Isso, reservatório das pulsões, autopercebe suas próprias variações de energia, Lacan propõe: o inconsciente trabalha e, ao trabalhar, isto é, ao garantir a repetição, o inconsciente goza.” Repare que não é o sujeito quem goza, mas o inconsciente. O inconsciente como estrutura.

Frederico Celentano

Um esboço de psicanálise a partir do poético.

 

Um esboço de psicanálise a partir do poético.

O presente artigo  procura expor uma posicionamento sobre o campo psicanalítico. O que é, afinal, a psicanálise? O que se faz, ou melhor, o que se pode fazer na prática clínica? Qual seu alcance, quais seus limites? O que se pode interpretar e como?

Ao inserir o poético no campo psicanalítico, busco uma reflexão sobre o que constitui o domínio, as “terras” da psicanálise. Tomo partido por uma psicanálise não-estrutural ou não-estruturalista. Uma psicanálise onde o sujeito não é apenas sobredeterminado, servo de três mestres (supereu, isso e realidade); onde não há realidade, nem mesmo a psíquica, a ser desvelada; onde o sujeito, ao se deparar com suas pulsões, poderia se transformar por meio do exercício da narrativa[2], da palavra e da poesia, definida como metáfora viva. Mais arte, menos ciência. Não se trata, portanto, de analisar a literatura e, mais precisamente, o poético por intermédio da psicanálise, mas pensar a psicanálise a partir do poético. A partir da expansão das fronteiras do devaneio e do sonho.

Parto do princípio de que todo material percebido e registrado pela experiência pode ser reescrito a partir da escuta, do setting e do par transferência / contra-transferência, com especial atenção a esta última.

Reescrever é ressignificar e, ao mesmo tempo, transformar. Está para além do recordar, do repetir e até mesmo do elaborar (do perlaborar). Está no reconstruir as possibilidades imaginativas humanas. O psicanalista bem poderia fazer a seus analisandos o mesmo voto que o personagem-escritor, Ts’ui Pen de “O Jardim dos caminhos que se bifurcam” de Borges:

“Deixo aos vários futuros (não a todos) o meu jardim de caminhos que se bifurcam.”

Se é assim, o campo psicanalítico se constitui como o ambiente em que podem ser criadas novas estórias pessoais – não todas as estórias, como não são todos os futuros – mas as estórias possíveis a partir de um encontro entre analisando e analista.

“O inconsciente (é) o fato (de) que estamos condenados a repetir um passado de que não nos recordamos e a tomarmos como recordações o que jamais se repetirá em sua forma primeira. A literatura é o conjunto de escritos explicitamente ordenados sob o signo da ficção (…) que reelaboram esse passado agitado por secretas verdades e que se encontram diretamente submetidos à lei de seu desconhecimento. Ler a ficção com o olhar da psicanálise permite, ao mesmo tempo, oferecer aos textos uma outra dimensão e observar a escrita em sua gênese e em seu funcionamento.” (tradução livre).

Jean Bellemin-Noël, Psychanalyse et littérature, PUF.

E por que não inverter a proposta e “ler” as representações do analisando a partir da ficção? Por que a psicanálise não poderia se encontrar na bifurcação da interpretação do texto e de sua recriação?

Freud reconheceu, no desenvolvimento de seus conceitos, a impossibilidade de trazer à consciência o inconsciente, postulando, na seqüência, o princípio da livre associação e seu correlato, a atenção flutuante que seriam capazes, na melhor das hipóteses, de trazer à luz representantes psíquicos de representações recalcadas. Dessa forma, haveria algo para sempre perdido, mas capaz de produzir ficções, narrativas, textos. Não seria exatamente esse o material de uma análise? A questão não estaria em como interpretar e ressignificar as metáforas?

É aqui onde entraria a escuta psicanalítica. No romance de Ts’ui Pei, os capítulos seguintes não seguem a lógica espaço-temporal dos anteriores. Na análise, os capítulos seguintes poderiam ser aqueles criados pelas possibilidades abertas na escuta analítica, nas bifurcações dos caminhos por ela engendrada. A escuta, entendida como presença física e testemunho, como acolhimento de uma angústia e esvaziamento dos sentidos para que um novo possa advir. Desconstruções que poderiam levar o analisando a novas bifurcações, a novas possibilidades narrativas, o analista a uma expansão de sua capacidade de testemunhar e ambos a reescrever os textos surgidos da própria relação analítica.

E se a escuta propõe novas bifurcações, o setting poderia ser o labirinto que oculta na espacialidade, “(…) infinitas séries de tempos, uma rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos”. (J.L. Borges, “O jardim dos caminhos que se Bifurcam” Ficções, Cia das Letras).

Sendo assim, não há realidade psíquica, mas um texto em constante transformação que representa um algo recalcado e perdido.

“Our revels now are ended. These our actors,

As I foretold you, were all spirits, and

Are melted into air, into thin air:

And like the baseless fabric of this vision,

The cloud-capp’d tow’rs, the gorgeous palaces,

The solemn temples, the great globe itself,

Yea, all which it inherit, shall dissolve,

And, like this insubstantial pageant faded,

Leave not a rack behind. We are such stuff

As dreams are made on; and our little life

Is rounded with a sleep.”

Shakespeare – The Tempest, Act 4, scene 1

A realidade e o próprio sujeito como construção de nossas mentes está longe de ser algo novo para a literatura. Shakespeare não só reconhece a ilusão das coisas, o tecido insubstancial do qual tudo é feito, mas que a essência do humano é feita dessa mesma “coisa” sobre a qual se constroem os sonhos, sendo que nossas pequenas vidas estão envoltas por um sono. Sendo assim, nada há de real, nem mesmo a “realidade psíquica”, pois o homem é, ele mesmo, sonho, criaturas de uma ilusão.

O que um analisando nos traz, além da ficção? Sua existência ao ocupar esse lugar, assim como a do analista, nada mais é do que narrativa. E se suas produções estão mediadas pelo recalcado, por aquilo que não tem juízo, nem valor, elas não têm consistência, não são objetos.

Os representantes psíquicos poderiam, assim, ser ressignificado, em princípio, ad infinitum. No entanto, no caso de uma relação analítica, essa ressignificação está balizada dentro dos limites da capacidade imaginativa da dupla analista/analisando, mas seria possível, mesmo que de maneira limitada, que novas reverberações se produzissem nos traços mnêmicos deixados pela experiência. Em sendo insubstancial essa estrutura psíquica, como é a própria realidade, os ecos psíquicos de estórias recontadas também poderiam reconfigurar a forma pela qual se dá o retorno do recalcado.

Um parênteses importante. Há de se convir que o termo “realidade psíquica” em Freud encerra algo de contraditório, pois o  psíquico, o percebido e registrado no psiquismo, mesmo que com “coerência e resistência comparáveis à realidade material”[3], não se coaduna com qualquer realidade ou realização. Mas, o emprego do termo não é aleatório.  Freud o utilizou em diversas ocasiões para designar uma visão positiva do trabalho psicanalítico que poderia ser realizado em bases ou a partir de “métodos científicos” de observação e experimentação de um fato ou de um objeto: a realidade psíquica. Isso porque se, para o indivíduo, essas realidades psíquicas são tão substanciais quanto as realidades materiais, elas poderiam ser conhecidas pelo analista através do discurso. O próprio discurso se transforma em objeto.

Mas, Shakespeare e Borges nos ensinam algo mais profundo: o que o humano pode conhecer é apenas o sonho de sua própria existência. Se isso lhe retira a prerrogativa de conhecer o real, confere-lhe o poder de contar suas estórias de inúmeras maneiras. O analista não tem, assim, em sua frente um objeto de análise, mas um sujeito, como ele próprio, feito de ilusão.

Freud reconhecia nos escritores essa sabedoria:

“E os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o ceú e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência.”

S. Freud – Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen, Obras Completas, tom IX, Imago, 2006, p. 20.

Mas, aqui, propõe-se uma visão mais radical, pois questiono a possibilidade de um conhecimento positivo, por um sujeito, sobre algo que, por essência e natureza, não lhe é exterior. O mundo psíquico conhecido pelo próprio analisando é ficção e a narrativa recebida pelo analista, uma obra aberta[4], cujos significados são inúmeros e as possibilidades de ressignificação infinitas.

Quais seriam as conseqüências dessa visão para a teoria e prática analíticas e como se inscreve a obra de um autor na produção de um saber psicanalítico?

É em Freud que podemos encontrar um esboço de resposta:

“Nosso processo consiste na observação consciente de processos mentais anormais em outras pessoas, com o objetivo de poder deduzir e mostrar suas leis. Sem dúvida o romancista procede de forma diversa. Dirige sua atenção para o inconsciente de seu próprio psiquismo, auscultando suas possíveis manifestações, e expressando-as através da arte, em vez de suprimi-las por uma crítica consciente. Desse modo, experimenta a partir de si mesmo o que aprendemos de outros: as leis a que as atividades do inconsciente devem obedecer. Mas ele não precisa expor essas leis, nem dar-se claramente conta delas; como resultado da tolerância de sua inteligência, elas se incorporam à sua criação.”

S. Freud – Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen, Obras Completas, tom IX, Imago, 2006, p. 83.

Mas, o que Freud reconhece como próprio ao artista, ele o nega ao psicanalista. Evidentemente, isso tem uma direta ligação com a posição que Freud procurava ocupar e a legitimação da psicanálise como ciência. No entanto, a leitura desse trecho e da sua análise da “Gradiva de Jensen” como um todo, permite formular vários problemas: Por que as produções de uma análise não poderiam ser incorporadas a um ato de criação analítica onde os significados possíveis são transformações[5] que têm um conteúdo manifesto, comunicável, reconhecido intersubjetivamente e ressiginifcado, mas que opera no inconsciente além da escuta e dos discursos?

Por certo, as idéias, os produtos de alguma transformação, sejam elas teorias ou representações produzidas pela dupla analista/analisando, permitem que certas invariâncias[6] surjam e a comunicação de um saber se efetue. Mas a prática psicanalítica faz pensar que as transformações, antes de emergirem como representações, operam na outra cena e são impossíveis de comunicar. Apenas temos o conhecimento delas no contar e no reposicionamento constante de analista e analisando na relação transferência / contra-transferência.

A visão de uma psicanálise como criação narrativa teria por efeito um manejo particular da contra-transferência, pois o que foi mobilizado no analista, se reconhecido e colocado no contexto das elaborações do analisando poderia se tornar elemento discursivo valioso para a produção deste e permitiria a expansão da escuta daquele. Confinar os sentimentos inconscientes do analista, gerados pelo analisando, a uma questão individual daquele, que deve ser tratada na sua análise pessoal é, apenas, olhar um lado da mesma moeda. Ao contrário, reconhecer e trabalhar a contra-transferência no setting é procurar compreender o que aquela dupla se torna capaz de elaborar para que as questões do analisando possam ser abordadas.

Bibliografia.

S. Freud, Obras Completas, Imago

– “A interpretação dos sonhos (II)”, Volume VII.

– “Delírios na Gradiva de Jensen”, Volume XIX.

– “Artigos sobre técnica”, Volume VIII.

– “Além do princípio de prazer”, Volume XVIII.

– “O Eu e o Isso”, Volume XIX

– “Novas Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise”, Volume XXII.

S. Freud, Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente

– “Pulsões e destinos da pulsão”, Volume I.

– “O problema econômico do masoquismo”, Volume III

– “Formulações sobre os Dois Princípios do Acontecere Psíquico”, Volume I.

– “ O Recalque”, Volume I.

– “O Inconsciente”, Volume II.

– “Luto e melancolia”, Volume II.

J.L. Borges,

– Ficções, “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam”, Cia das Letras.

– “História da Eternidade”, Cia das Letras.

C. Baudelaire, Poesia e Prosa, Nova Aguilar

– “As Flores do Mal”, tradução Ivan Junqueira.

– “Projéteis”, tradução Ivo Barroso.

-“Crítica Literária”, “O Pintor da Vida Moderna”, tradução Ivo Barroso.

P. Emmanuel, “Baudelaire, la femme et Dieu”, Seuil.

J.P. Sartre, “Baudelaire”, Foilo Essais.

J.B. Baronian, “Baudelaire”, Folio Biographies.

J. Guisburg, “O Romantismo”, Perspectiva.

J. Bellemin-Noël, Psychanalyse et littérature”, PUF.

W.R.Bion, Transformações, Imago.


[1] Em primeiro lugar, um interesse pessoal, tardio, mas crescente pela literatura de ficção e poesia e, em segundo lugar, uma formação anterior em ciências políticas e relações internacionais, orientado por uma visão teórica construcionista. Nesse percurso, tanto a obra de Foucault, lido a partir de uma grade de entendimento crítica e não somente estruturalista, quanto a obra do politólogo americano Murray Edelman e dos teóricos das relações internacionais Alexander Wendt e  John Ruggie foram essenciais.

[2] Numa possível interpretação do seminário 22 de Lacan, se o Real está fora das categorias de significação, o que permitiria a existência do corpo, do imaginário, nesse Real seria o Simbólico, mas não um Simbólico determinado por sub ou super estruturas, pelos imperativos do Isso, ou pelos limites do Supereu e da cultura. Um Simbólico mais plástico, composto de representações verbais e, principalmente, não verbais, capazes de se deslocar e de se condensar no diálogo de inconscientes, nos jogos entre associações livres e atenções flutuantes.

[3] S. Freud, Conferências introdutórias sobre a psicanálise, Obras Completas, vol. XV, Imago

[4]  U. Eco, A obra aberta, editora Perspectiva.

[5] W.R.Bion, Transformações, Imago.

[6] L.C. Figueiredo, Bion em nove lições, capítulo 1, Escuta.

Continuação

Amigos, após algum tempo sem novos posts, retomarei a tarefa de colocar on-line o resumo dos principais escritos psicanalíticos de Freud a partir da próxima semana.

Esse período de quase um ano foi marcado por muito trabalho. Tenho me dedicado ao estudo da chamada escola inglesa de psicanálise, principalmente à obra de Bion. Em breve, terei material suficiente para publicar aqui.

Tenho também o prazer de lhes dizer que conto, a partir de hoje, com a participação da Patricia Vieira, amiga, parceira e sócia. Iniciamos juntos o caminho na psicanálise e, agora, com a inauguração de um espaço de reflexão sobre arte e psicanálise em São Paulo, na Vila Madalena, damos mais um passo importante para abrir as perspectivas de um livre pensar sobre o humano.

Aproveito para os convidar a visitar a página no facebook do nosso primeiro projeto: Baudelaire, o pintor da vida moderna, http://www.facebook.com/pages/Baudelaire-Pintor-da-Vida-Moderna/435607563188677.

Abs.

Frederico

 

 

 

 

Ponto de partida para uma reflexão sobre a morte

A psicanálise freudiana aborda a questão da morte em várias etapas de sua estruturação: a castração, primeira grande experiência de separação, as perdas e o luto que somos forçados a realizar, as introjeções e identificações com cada um desses objetos perdidos, constituindo e reconstruindo nosso caráter e, por fim, a idéia de uma pulsão de morte, a tendência de toda energia vital em encontrar seu irredutível destino, o estado inorgânico, colocando fim a Eros, o perturbador do absoluto estado de inexistência.

É bem verdade qe Tânatos convive com Eros, Tânatos se funde a Eros e se alimenta de sua energia. Eros também depende de Tânatos, afinal a energia vital só pode existir se for reciclada, reorganizada. Mas nesse processo, há um limite. Lentamente, parte da energia se perde. Princípio da entropia, grandeza mensuradora da parcela de energia que não pode mais ser transformada em trabalho.

Aqui se encontra todo o limite da palavra sobre a morte. A morte é o resultado da vida e não pode ser significada. A experiência da morte somente pode ser feita pelo outro e nunca comunicada. Como, então, significar a vida? Ou, pelo menos, significar uma vida?

Não é uma psicanálise das representações que se perfaz, mas a psicanálise do real. Uma psicanálise que está além da linguagem. Uma psicanálise do impossível. Ponto de partida.

Frederico Celentano

“Neurose e Psicose” e “A perda da realidade na Neurose e na Psicose”

“Neurose e Psicose” e “A perda da realidade na Neurose e na Psicose” – Freud, Obras Psicológicas Completas, vol. XIX.

“Cinzenta, meu querido amigo, é toda teoria,

E verde somente a árvore dourada da vida.”

Mefistófeles em Fausto, Parte I Cena 4

  1. Para Freud o Eu é uma instância psíquica que realiza uma intermediação entre o mundo externo e o Isso – ou ID – este sendo o depósito de nossas pulsões (que podem se transformar em uma força que é a libido). O Eu, também faz uma intermediação entre o mundo externo e o Supereu, herdeiro da figura do pai introjetada a partir da resolução do Édipo e que se transforma na consciência moral e crítica do sujeito. Nesse sentido, ressalte-se que o Supereu não seria propriamente o representante da realidade e suas exigências, já que também tem uma parte mergulhada no inconsciente e é orientado pelo material reprimido a partir da castração.
  2. Sendo assim, o Eu está sempre tentando servir a vários senhores – ao Isso e aos seus impulsos, ao Supereu e suas observações críticas e ao mundo externo com todas suas exigências.
  3. Dessa forma, além da melhor compreensão do funcionamento psíquico, a segunda tópica permite lançar um novo olhar sobre fenômenos já conhecidos como a neurose e a psicose.
  4. A neurose, segundo essa teoria, seria o sintoma resultante de um conflito entre o Eu e o Isso, ao passo que a psicose seria o desfecho análogo de um “distúrbio nas relações entre o Eu e o mundo externo”.
  5. As neuroses transferenciais se dão através de um recúo do Eu para aceitar um impulso do Isso ou ajudá-lo a encontrar um escoador ou motor ou, ainda, a recusar o objeto visado pela pulsão. Se há, portanto repressão, o material recalcado criaria uma representação substitutiva – o sintoma. Mas o Eu reconhece o sintoma como um intruso, como um vazamento nas paredes erigidas pelas forças repressoras, um corpo estranho que ameaça a sua unidade. Isso produz o quadro de uma neurose. O Eu segue, para tanto, as ordens do Supereu que está fundado em imperativos da civilização que encontram representação no material reprimido (Freud demonstra que a percepção do mundo exterior está inscrita em traços mnêmicos que são ressignificados ao longo da vida do sujeito. A “realidade” do mundo externo da qual o Supereu se alimenta também está nas lembranças percebidas e signifcadas que são possessão do Eu). É, portanto, o Eu que exerce a repressão, a anti-catexia de resistência em nome do Supereu e da realidade.
  6. Na psicose, o mundo exterior não é percebido ou sua percepção não produz qualquer efeito. O mundo externo governa o Eu através de percepções e lembranças significadas de uma maneira muito particular e subjetiva. Na amência, por exemplo, não são recusadas apenas novas percepções do mundo externo, mas as “percepções” do mundo interno também são criticadas e reconstruidas em função de uma defesa. Esse novo mundo tem direta relação com os impulsos do ISSO acompanhados de uma séria frustração encontrada na realidade. A psicose se parece muito com o sonho normal, porque o pressuposto para o sonhar é o sono que, por sua vez, se caracteriza pelo afastamento da percepção da realidade.
  7. Na psicoses há, segundo Freud, um remendo onde apareceu uma fenda entre o Eu e o mundo externo. Esse remendo se concretiza na remodelação do mundo que é uma tentativa de cura do próprio sujeito.
  8. Mas é preciso lembrar que a frustração ou a não realização (impossibilidade de realização) de um desejo está na origem tanto da psiconeurose quanto da psicose. A frustração é sempre externa, mas no caso da psiconeurose ela está mediada pelo Supereu que assumiu a representação das exigências da realidade. O desfecho do conflito irá caracterizar a etiologia: se o Eu permanece fiel à realidade e tenta silenciar as pulsões recalcadas do Isso , dando origem a uma neurose, ou se o Eu cede à pressão do Isso e é arrancado da realidade, originando uma psicose.
  9. O Supereu traz uma complicação nesse processo porque ele une em si influências do mundo externo, mas também influências do Isso e se constitui num modelo ideal que orienta o esforço do Eu para reconciliar os diversos relacionamentos dependentes, o que passa pela forma de dissolução do Édipo, pelo processo de identificações e de relações objetais que se constitui a partir daí, pela história libidinal do indivíduo, etc.
  10. Freud termina o pequeno texto supondo a existência de um outro tipo de conflito entre o Eu e o Supereu. A melancolia seria um exemplo típico desse grupo, caracterizado como um neurose narcísica. (O Eu não consegue, face à realidade e às pulsões do Isso, realizar novas catexias de objeto e realizar o ideal do Supereu o que leva a um estado melancólico crônico).
  11. Todas essa afecções seriam advindas de um fracasso do Eu em reconciliar as exigências feitas a ele. “Seria desejável saber em que circunstâncias e por que meios o Eu pode ter êxito em emergir de tais conflitos”. Também é interessante notar o quanto o Eu pode se deformar e até mesmo cindir face a essas exigências (cf. A divisão do Eu nos processos de Defesa). Termina o texto com uma questão: na neurose, a repressão cumpre o papel de negar uma pulsão, realizar uma fuga e uma proteção. De maneira análoga, qual seria o mecanismo que levaria o Eu a se desligar do mundo externo? Parece ser também uma retirada de catexia.
  12. No início do artigo A perda da realidade na neurose e na psicose, Freud coloca um problema: na neurose há também um afastamento da realidade, uma fuga da vida real. Freud diz que suas considerações no texto anterior, Psicose e Neurose, concentravam-se na gênese da neurose e da psicose pnse o Eu, no primeiro caso, recusa a pulsão em nome dos imperativos da realidade, ao passo que, no segundo caso, o Eu cede à pressão do Isso e renega a realidade.
  13. A perda da realidade na neurose advém do fracasso da repressão (retorno do recalcado) que afeta exatamente aquele fragmento de realidade cujas exigências resultaram na repressão. Freud nos fornece um exemplo: o caso de uma de suas pacientes que tinha um amor secreto por sue cunhado. No leito de morte de sua irmã, afasta a idéia objetável (ter o caminho livre para ficar com o cunhado) o que acarreta uma conversão histérica mais tarde (retorno do recalcado). No caso de uma psicose, a reação seria negar a morte da irmã e criar uma realidade onde ela ainda exista.
  14. Dessa forma, na neurose há duas etapas: repressão e retorno do recalcado. Na psicose também há duas etapas: afastamento da realidade e tentativa de reparação do dano = restabelecimento das relações do indivíduo com a realidade, através da criação de uma nova realidade que se adeque às exigências da realidade que levaram à ruptura (mas essas exigências não seriam justamente às do Supereu?).
  15. É certo no entanto que ambas as reações servem ao desejo advindo do Isso que não quer se dobrar à realidade. Tanto a neurose quanto a psicose partem de uma rebelião do Eu contra a realidade ou de sua incapacidade a se adaptar a ela.
  16. A neurose não repudia a realidade, ela se dobra à realidade e o retorno do recalcado apenas a ignora; na psicose há fuga da realidade e tentativa de substituí-la.
  17. Na psicose o remodelamento se faz em função de antigas relações com a realidade, presentes nos traços mnêmicos do sujeito. Busca percepções que se coadunem com a nova realidade: delírios, alucinações.
  18. Na neurose há uma ansiedade gerada toda vez que o recalcado faz uma arremetida para frente. As formações substitutivas constituem uma conciliação que não proporciona plena satisfação. Da mesma forma, a realidade alternativa na psicose não proporciona plena satisfação. Ou seja, a tarefa empreendida na segunda etapa é mal-sucedida. Mas enquanto na psicose a primeira etapa é em si patológica, na neurose, a primeira etapa pode não o ser.
  19. É importante notar que a perda de realidade na neurose está ligada à fantasia acompanhada do retorno do recalcado que se realiza por um processo de regressão a um passado real satisfatório (ainda que deslocado).
  20. Na psicose a fantasia é lugar ou estrutura da qual derivam os materiais para a construção da nova realidade. Essa nova realidade tem, portanto, um significado preciso: é um fragmento diferente daquele contra o qual o Eu tentou se defender. (na neurose o caminho seria interpretar o retorno do recalcado para significá-lo, nomeá-lo, encontrar a causa da repressão. Na psicose as coisas parecem ser bem mais complexas)
  21. É mais preciso considerar que a fantasia exerça na psicose um papel importante de onde derivam os materiais para a remodelação da realidade. No entanto, uma vez que houve o processo de remodelação, a fantasia se perde e o novo mundo construído aparece como real. Na neurose há uma tentativa contínua de encontrar nos objetos da realidade uma adequação à fantasia (principalmente na neurose de transferência, já que na neurose obsessiva há uma formação reativa aos desejos recalcados e na histeria há conversão física ou teatralidade).

Frederico Celentano

Distúrbios Alimentares: comentários sobre: “Em busca das palavras perdidas: corpo-carcereiro da mente nos distúrbios alimentares.”

Comentários sobre: “Em busca das palavras perdidas: corpo-carcereiro da mente nos distúrbios alimentares.” Marina Ramalho Miranda, in revista Ide 30(45), pgs 28 – 34, São Paulo, dezembro de 2007.

  1. Quando uma menina-moça-mulher se vê presa a um corpo sombrio e se pergunta “Como podem, corpo e alma, habitar o mesmo universo?”. Quando considera “Cego de cólera, o corpo se move em direção a desejos movediços, onde o mel se torna fel… onde tudo foi um erro”, quando seu corpo se situa sem representação e apenas incarna o desejo do Outro. Quando é um sujeito em exílio do corpo e faminta, espera encontrar a fórmula mágica para satisfazer um desejo sem subjetivação, quando a satisfação se torna auto-flagelo, impulsionando o corpo à morte, há algo de misterioso que impõe uma indagação  sobre as causas profundas desse sintoma radical.
  2. Os textos são desabafos do sofrimento e não apologias. As pró-Anas, pró-Mias pedem ajuda, pedem uma explicação, pedem um limite para sua busca, um interdito. Pedem um limite para o sentimento de culpa e de não se situarem jamais à altura de qualquer expectativa. Já que são expectativas heteroimputadas. Como se libertar do desejo do Outro e fazer surgir um sujeito desejante?
  3. Adoecer no corpo, inscrever o sintoma psíquico no corpo, converter em realidade uma representação que busca significação. Almas despregadas, livres para voar os mais altos devaneios, os mais altos ideais que podem destruí-las pela impotência diante da vida. Impotência traduzida por inapetência. Inapetência de uma boca que não consegue usar a palavra como traço de união entre a matéria e a anima, entre o que se percebe e seus significantes. Nada entra, nada sai. Ou melhor, entra o nada, sai o nada. O alimento não é compreendido assim como a palavra.
  4. Nos distúrbios alimentares, principalmente na anorexia, estamos em um universo pré-simbólico, psiquismos povoados de angústia e culpa, afetos que não estão significados. Você é uma vaca gorda, você não é boa o suficiente. Olhe as imagens que te servem de referencia, você deveria ser como elas, mas nunca será… você nunca terá essas proporções, essa pele, esse corpo de anjo. Portanto é melhor se reduzir ao nada? É exatamente esse nada que te é impingido. O nada de significado, apenas o ser através da imagem, uma existência entre o real e o imaginário, sem qualquer significado. Imagens infantis, infantilizadas. Os corpos dessas meninas-moças-mulheres são diários pessoais, mas reflexos de uma sociedade, de uma cultura, de um momento histórico. Perturbações que denunciam uma singularidade histórica.
  5. As buscas que aparecem desse movimento são enganadas pela ausência de desejo, os investimentos libidinais estão todos deslocados para o alimento, aquilo que deveria ser o objeto de amor do e pelo outro, mas que não encontra qualquer representação. A libido está investida no Eu, mas associada a Tânatos, representado pela repetição, pela obsessão de um Supereu tirânico, de um Eu ideal introjetado que não conseguiu se transformar em Ideal de Eu. Corpos ativos em sua mudez. “A memória para as experiências de prazer estão prejudicadas, logo, o desprazer e o desconforto imperam, soberanos”.
  6. (Você é o que você come, mas também você come o que você é. E você é o seu desejo. Você vivencia o mundo, absorve, significa, introjeta o mundo segundo o desejo que te foi significado e que você ingeriu. Indivíduos não criados para a linguagem simbólica estão) em uma verdadeira prisão em que a vida afetiva definha, os obesos inflam inchados pelo alimento não significado e os anoréxicos definham por não se sentirem aptos, por não merecerem nada. Ambos comem nada. Só deixam à mostra nos seus corpos o que não é para ser visto, os ossos e a gordura.
  7. Que linguagem é essa que se apresenta carregada de imagem? Em que terreno estamos? De qual dimensão da comunicação estamos tratando? De onde vem os procedimentos de controle e dominação que procuram domar a carne, domar os instintos? Em nome do que?
  8. Bion pensava que as sensações manifestavam-se como elementos brutos, não significados. Sem poder sonhar, sem poder exercer a vida simbólica, aparecem as sensações corporais. Fugas somáticas que surgem no lugar das fantasias. (O anoréxico cria um espaço estéril entre ele e o Outro, já que só pode se oferecer ao desejo do Outro que aparece materializado no corpo real, na carne e num imaginário distorcido. Um fenômeno histérico contemporâneo, onde a boca se fecha para a comida na mesma proporção que a mente burla a possibilidade de pensar e sentir o desejo, a satisfação, a dor).
  9. (Essa histeria também possui elementos de uma obsessiva neurose: comer compulsivamente nada, repetir, deixando que a pulsão de morte, tomada pela libido (oralidade erógena revertida contra o sujeito), se volta contra o Eu, orientado pelo sadismo do Supereu. Amor e agressividade que não encontram objeto externo. Há uma ruptura fundamental).
  10. Uma obsessão que flerta com a psicose, quando além de se oferecer, como sacrifício, ao gozo do Outro, inscreve-se no gozo do Outro, alucinando um ideal de perfeição que se contrapõe a um corpo que se vê tanto mais distorcido quanto o ideal se reforça numa iconografia ascética.  A perfeição é ascética, não dá margem ao erro, à imperfeição, à possibilidade de aperfeiçoamento, a diversidade que só se cria no erro. Não há tentativa possível se não se aceita o errar.
  11. “Uma diferenciação progressiva entre o corpo próprio e a primeira representação do mundo externo, que é o seio materno, vai se desenvolver na psique infantil. Paralelamente, o que é psíquico vai se distinguindo, aos poucos, do que é somático. A lenta dessomatização da psique se acompanha, então, de uma dupla busca infantil: sobretudo nos casos de dor física ou psíquica, o bebê tentará recriar a ilusão de ter uma unidade corporal e mental com a mãe-seio e ao mesmo tempo lutará para diferenciar-se do seu corpo e do seu ser. Quando o inconsciente materno não põe obstáculos a esse movimento, a criança construirá, por intermédio dos processos de internalização – incorporação, introjeção, identificação – a imagem interna de uma mãe nutridora, apoiando seu desejo de autonomia corporal e psíquica. Daí, então, a criança poderá construir a identificação com esta imago essencial à sua estruturação psíquica e que lhe permitirá assumir as funções maternas introjetadas. Conservará esse duplo desejo de ser ela própria e de ser o outro, assim como a dupla ilusão de estar munida de uma identidade separada, mantendo, ao mesmo tempo, um acesso virtual à unidade originária”. (McDougall, 1987) “A aquisição da capacidade e do sentimento de que habitamos o próprio corpo tem a ver com o luto que deveríamos fazer do corpo da mãe. Nesse movimento de separação surge e urge a entrada do pai, a figura dele no mundo simbólico da mãe e, consequentemente, no mundo da criança”.
  12. Supõe-se, portanto, que há um descompasso entre filho-mãe, uma ruptura ocorrida nesse processo. Pressupõe-se que mãe tivera uma falha na estruturação edipiana onde a figura masculina não representou um papel determinante. O papel do interditor, daquele que traz num primeiro momento as regras e as leis. Aquele que rompe com a unidade fusional do filho com a mãe e que irá representar um objeto de amor, seja pela projeção da libido, seja pela identificação. A mãe, dessa maneira, não castrada, irá ou receber o corpo da criança como um elemento estranho ou não irá querer romper a unidade fusional. A mãe tem um vazio interno que voltará ao bebê com uma fome ilimitada de completude. É um objeto intrusivo devastador, uma boca tirânica.  A formação reativa é uma resistência a essa opressão. O que essa mãe oferece não pode ser aceito. Tenta-se libertar da opressão recusando o alimento, posto que o alimento materno é o primeiro objeto oferecido pelo outro. Nessa operação, infelizmente, o vazio se torna constitutivo e o nada seu objeto privilegiado. O vazio da mãe é introjetado e a tentativa de libertação mal-fadada. Acarreta-se tão somente uma ruptura da relação com os objetos. Inclusive com o próprio corpo, como objeto de consecução do prazer.
  13. Emagrecer na anorexia é, de fato, uma dramatização no corpo, a busca de fazer desaparecer de dentro de si o desejo do Outro. Daí as sensações de alívio corporal descritos pela sensação de vazio no estômago. Comer compulsivamente, o que ocorre com frequência em casos de anorexia, dramatiza a relação primitiva com a mãe. É a pulsão de morte operando através da repetição compulsiva (inserir aqui a reflexão de Freud em o problema econômico do masoquismo sobre o masoquismo feminino e o masoquismo moral). Essa reintrojeção é acompanhada de  nojo / nojo do alimento, nojo de si mesma por aceitar essa imposição do Outro. Mas o Supereu materno é muito mais severo que o Supereu paterno. Sem interdição paterna, o Supereu materndo quer tudo, absolutamente tudo, tudo absolutamente. Mas nada existe em termos absolutos, e os termos absolutos se transformam em nada. Um não-significado. De fato, na anorexia há uma sensação de débito constante que fica se renovando em busca de um ideal nunca alcançado”.  A impossibilidade de nomear essa angústia favorece a migração do afeto para o corpo (um afeto destrutivo, carregado de Tânatos – aqui vale a pena relembrar a discussão sobre a fusão e desfusão entre Eros e Tânatos em “O problema econômico do masoquismo”).
  14. Para o obeso, por contraste, o alimento se torna o fetiche de fortalecimento do Eu fragilizado e fragmentado. Espera-se que o alimento supra o vazio. O Obeso nega a possibilidade de destruir os bons objetos (ingerir = destruir). Daí a repetição da ingestão. Quanto mais ingerir, mais procurará reproduzir a presença do alimento, ingerindo-o novamente. “Se o indivíduo nega a destruição do objeto utilizando a presença concreta do alimento, quando ele é ingerido, esta sensação desaparece, é fugaz, resta apenas a impressão sensorial digestiva e afetiva daquilo que se incorporou”.
  15. Ao alcançar a adolescência, com a irrupção da sexualidade, o sujeito que tem um vazio constitutivo sente novamente um arrombamento psíquico. Não pode ser tudo, não consegue significar o tudo, não consegue se ver potente face ao mundo. Tenta defender-se contra o vazio representacional. Tenta defender-se contra uma iminente fragmentação de um Eu esmagado pelo Supereu materno introjetado e pelo Isso que tenta investir objetos (objetos de prazer são, por definição ameaçadores demais), mas esse caminho está barrado. Toda libido se associa à pulsão de morte que também não pode se transformar em agressividade. Volta-se contra o Eu com uma força avassaladora.
  16. “Observo que nos estados em que há um profundo conflito (entre as instâncias psíquicas) e os processos de simbolização ficaram prejudicados (cf. Bleichmar e o Édipo em Lacan), há uma predominância de atos no lugar das palavras, das ações concretas em direção a fugas, evitamentos e negações da realidade ao invés de enfrentamentos e digestão da dor e do sofrimento. “A análise teria por função resgatar um sentido pleno de significações para encher de conteúdos ideativos essa vida que ficou esvaziada, um mundo objetal congelado e por isso, paralisado, impedido de retomar o movimento dinâmico que constitui o próprio do conhecimento”. (criticar a primeira parte: resgatar o sentido pleno de significações para encher de conteúdos – “encher de conteúdos”???? – Encher alguém que está cheio de conteúdos não significados ????).
  17. A anorexia é um distúrbio alimentar que se caracteriza por uma defesa (do Eu contra o Supereu). Essa defesa subverte a ordem natural do desenvolvimento físico e emocional: vontade, desejo, fome, os atrativos femininos caminha na contra-mão da natureza chocando-se com a genitalidade e com o alcance das significações (Édipo).
  18. Freud: “a famosa anorexia nervosa em moças jovens, segundo me parece (depois de cuidadosa observação) é uma melancolia onde a sexualidade não se desenvolveu”. (1895) (cf. a reflexão de Freud sobre a neurose narcísica e como esta deixou de ser utilizada para dar lugar à psicose).
  19. As pulsões e seus representantes psíquicos estão impedidos de serem reconhecidos. A palavra analítica deve desmontar essas defesas enclausurantes. A palvra-alimento, a palavra que nutre, que retoma a libido na pulsão de vida, a palavra que realiza a entrada no simbólico. A palavra interpretativa que conciliará a pulsão e o imaginário à cf. tese de que sem o simbólico, produz-se uma psicose.
  20. “É com efeito a incidência intersubjetiva da linguagem do objeto que permite ao analisando carregar a qualidade de fala que ele endereça a si mesmo. E é da qualidade intrapsíquica dessa fala que depende a transformação das moções pulsionais em representações inconscientes”.  Exercício da literatura, da escrita é importantíssimo !!! – gradual aquisição do sentido, de memórias relatadas, de palavras ouvidas, das sensações convocadas, estimuladas pelos ensaios escritos que vão se transformando em falas associativas e finalmente nos afetos. “O trabalho de construção supõe simultaneamente construção de lugares, desimaginação das imagens da fala do analisando, e apresentação em figuras do interior da memória das palavras ali onde a fala do analisando oferece a certeza crédula de suas superfícies” (Fédida, 1991).  “No lugar da memória do acontecimento disruptivo, há um burado. Entretanto nas bordas do buraco podem ficar representações-limite que são o traço do processo motor que permitiu a descarga de excitação causada pelo traume”. O que importa para essas jovens parece ser a criação de uma nova metáfora, não corpórea, mas simbólica delas mesmas.
Frederico Celentano

“O Problema Econômico do Masoquismo”

“O Problema Econômico do Masoquismo” – Freud, Obras Psicológicas Completas, vol. XIX. 

  1. O problema do masoquismo traz um questionamento essencial ao ponto de vista econômico desenvolvido por Freud. Se o aparelho psíquico está orientado pela obtenção do prazer e pela evitação do desprazer, o sofrimento como objetivo seria incompreensível.
  2. A resposta para esse problema está, segundo Freud, em encontrar as relações entre o princípio do prazer e as pulsões de vida e de morte.
  3. O princípio desprazer-prazer deveria estar identificado ao princípio de Nirvana (carga-descarga). A teoria Freudiana traz uma série de problemas aqui: Eros está a serviço da introdução de uma perturbação que é a própria vida e, portanto, diretamente conectado ao princípio de prazer. Mas, como o aumento de carga/tensão poderia trazer prazer? Na realidade, como observa Freud, obter prazer através de aumento de tensão e não na sua diminuição  não deveria ser uma novidade, o prazer sexual é tipicamente obtido dessa forma. (mas lembre-se que a descarga é uma meta que se não realizado gera frustração e desprazer).
  4. Freud procura, então, uma resposta a esse dilema introduzindo a idéia de que não se pode simplesmente avaliar o prazer-desprazer a partir de uma perspectiva quantitativa. É preciso encontrar um aspecto qualitativo. Mas afirma não saber o que é esse elemento.
  5. “Seja como for, temos de perceber que o princípio de Nirvana, pertencendo à pulsão de morte, experimentou nos organismos vivos uma modificação através do qual se tornou o princípio de prazer e, doravante, evitaremos encarar os dos princípios como um só. Se nos preocuparmos em acompanhar essa linha de pensamento não é difícil imaginar a força que foi a fonte dessa modificação. Ela só pode advir da pulsão de vida, a libido, que assim, lado a lado com a pulsão de morte, apoderou-se de uma cota na regulação dos processos da vida”.
  6. Freud, então, teoriza o seguinte: princípio de prazer corresponde a Eros, à pulsão de vida, o princípio de Nirvana corresponde à pulsão de morte e o princípio de realidade, à influência do mundo externo.
  7. Aqui Freud introduz uma noção importante: os diferentes princípios toleram-se mutuamente, podendo, no entanto, haver conflitos pelo fato de terem objetivos diferentes: uma redução do estímulo para o princípio de Nirvana, uma característica qualitativa do estímulo no caso do princípio de prazer (libido faz Tânatos se transformar em Eros) e um adiamento da descarga e uma aquiescência temporária ao desprazer devido à tensão imposta pelo princípio de realidade). Conclusão: o princípio de prazer é o vigia de nossas vidas.
  8. (Uma questão: dentro de uma perspectiva em que as pulsões se encontram fundidas, não haveria vida sem morte, não haveria prazer sem desprazer. Tanto do ponto de vista quantitativo (carga e descarga) quanto qualitativo (libido e constância), Eros e Tânatos se encontram fundidos, como afirma o próprio Freud em o Eu e o Isso. Há constância em Eros e libido em Tânatos. O princípio do prazer e o princípio de nirvana isolados seriam a negação da própria existência).
  9. Três formas de masoquismo: masoquismo erógeno (prazer na dor), masoquismo feminino (introdução da potência através do ato sexual em si, ser forçado à obediência incondicional – passividade / princípio feminino, que é, na perversão, associado a ser aviltado, maltratado, sujo) e masoquismo moral (sentimento de culpa). Começa a reflexão pelo segundo.
  10. No caso do masoquismo dito feminino, a conclusão é que a pessoa quer ser tratada como uma criança travessa, pequena e desamparada que deseja ser conduzida, dominada. O termo feminino surge pela posição de estar castrado, ser copulado ou dar a luz ao bebê (os tempos do Édipo na mulher segundo Freud). (Nesse sentido, esse masoquismo corresponderia a uma repetição desses tempos do Édipo em uma situação onde a castração não se perfez – o termo masoquismo infantil também poderia ser utilizado). No masoquismo feminino surge também um sentimento de culpa – o indivíduo presume que cometeu algum crime que deve ser expiado.
  11. Interessante notar o seguinte: esse masoquismo feminino que se manifesta sob a forma de um masoquismo erógeno seria a repetição de um mecanismo essencialmente infantil: na seção sobre as fontes da sexualidade infantil nos Três Ensaios, Freud afirma que a excitação sexual surge tão logo a intensidade adquire um certo quantum. De acordo com essa idéia a excitação libidinal tem a ver, na criança, com um acúmulo de carga e não com a descarga. Esse aspecto seria abandonado com o tempo / com o amadurecimento (poderíamos dizer que teria direta relação com o fortalecimento do Eu e com a capacidade do sistema psíquico em direcionar sua libido para determinados objetos).  Essa é a fundação sobre a qual o masoquismo erógeno estaria construída.
  12. Mas essa explicação não daria conta das correspondências existentes entre o masoquismo e o sadismo.  Freud retoma sua teoria exposta nas duas classes de instintos (pulsões): os organismos multicelulares tenderiam a tornar inócuo o mecanismo destruidor através da líbio que teria por missão direcionar a pulsão de morte no sentido dos objetos do mundo externo. A pulsão de morte se transforma em pulsão de destruiçãoo, dominação ou poder. Nesse sentido, uma parte da pulsão não compartilharia dessa transposição e se voltaria contra o indivíduo. – aqui podemos identificar o masoquismo erógeno.
  13. “Não podemos presentemente imaginar a extensão das partes das pulsões de morte que se recusam a serem amansadas assim, por estarem vinculadas a misturas de libido”.
  14. Os mecanismos biológicos são aqui amplamente desconhecidos, mas percebe-se uma amálgama entre as pulsões de vida e de morte em proporções variáveis. (Freud parece aqui não se desvincular de uma noção quantitativa – quantidades diferentes de pulsões. Parece-me que os processos psíquicos, normais ou patológicos, estão mais determinados por combinações qualificadas, ou significadas, entre essas duas pulsões).
  15. No masoquismo erógeno, assim como no sadismo, a pulsão de morte, tomada pela libido, escolhe um objeto. No caso do masoquismo o Eu é esse objeto. Assim como há um narcisismo secundário pode também haver um masoquismo secundário, onde a pulsão de destruição voltada para um objeto pode se recolher no Eu. (Interessante notar o seguinte: no processo de identificação com objetos, dentro da vida libidinal do indivíduo, pode-se supor, assim, que um objeto odiado pode ser introjetado, tanto quanto um objeto amado).
  16. O masoquismo erógeno acompanha todas as fases de desenvolvimento da libido: fase oral = medo de ser devorado pelo animal totêmico (figura do pai); fase anal-sádica: desejo de ser dominado e espancado; fase fálica = fantasia da castração; fase genital: ser copulado e dar à luz.
  17. No masoquismo moral há um aspecto importante: afrouxamento da vinculação com a sexualidade (mas não com a libido). Não é o sofrimento infligido pela pessoa amada, mas o próprio sofrimento é o que importa. “… o verdadeiro masoquista sempre oferece a face onde quer que tenha a oportunidade de receber um golpe”. Nesse masoquismo, há um sentimento de culpa inconsciente (mais precisamente uma necessidade psíquica de punição) e a satisfação desse sentimento é o lucro auferido pelo indivíduo através da doença (lucro no sentido de satisfação psíquica). O sofrimento acarretado é o fator que torna a doença valiosa para o masoquista. Muitas vezes, a tendência masoquista desaparece quando substituída por um outro sofrimento de causa exógena.
  18. A função de consciência moral está atribuída ao Supereu e a culpa reflete uma tensão entre o Eu e o Supereu. O Eu reage com sentimentos de ansiedade já que não pôde estar à altura das exigências feitas pelo Supereu. Questão: como o Supereu veio a representar esse papel e por que o Eu deve temê-lo nessa configuração?
  19. O Supereu é tanto um representante do Isso, quanto um representante das exigências do mundo externo. Surgiu como uma modificação do Eu a partir das introjeções dos primeiros objetos que receberam os impulsos libidinais do Isso. Mas essa relação com esses objetos foi dessexualizada, pois somente assim se pôde superar o complexo de Édipo, mas o Supereu reteve as características da pessoa introjetada (ou melhor dizendo da função representada pela pessoa). Mas essas figuras que foram introjetadas também representam o mundo externo e seus imperativos, onde “jazem escondidas todas as influências do passado” (e do presente também, afinal, na saída do complexo de Édipo, o falo está inserido na cultura). O Supereu é o herdeiro do complexo de Édipo um modelo ideal de adequação ao mundo externo (tal como percebido e significado).
  20. O curso do desenvolvimento do indivíduo faz com que o Eu se torne mais resistente às influências dos objetos externos e as imagos de pais, professores, autoridades, ficam em segundo plano, assumindo a forma de um senso ético próprio. O último representante do poder parental supremo parece ser o Destino que poucas pessoas conseguem ver como algo impessoal, transformando-o em razão e necessidade. O Destino, no mais das vezes, incarna-se na visão parental da sorte, materializada na existência de um plano divino e de um pai celestial.
  21. Os indivíduos que possuem uma ultramoralidade parecem inibidos e se tornam masoquistas se transformam o sadismo do Supereu (que pode se tornar mais facilmente consciente) em masoquismo do Eu, necessidade de punição satisfeita pelo sofrimento que constitui o núcleo do inconsciente.
  22. “A consciência e a moralidade surgiram mediante a superação, a dessexualização do complexo de Édipo; através do masoquismo moral, a moralidade mais uma vez se torna sexualizada, o complexo de Édipo é revivido e abre-se o caminho para um regressão, da moralidade para o complexo de Édipo”.  A consciência se desvanece no masoquismo (que pode ser caracterizado como uma perversão). Novamente, o masoquista tenta realizar ações proibidas que devem ser expiadas pela consciência sádica. “A fim de provocar a punição deste último representante dos pais, o masoquista deve fazer o que é desaconselhável, agir contra seus próprios interesses, arruinar as perspectivas que se abrem para ele no mundo real e, talvez, destruir sua própria existência real”. (oralidade erógena revertida contra o sujeito)
  23. Interessante notar que no masoquista, há uma supressão da pulsão de destruição (supressão cultural dos instintos). A destrutividade alimenta o sadismo do Supereu o que, por sua vez, alimenta o masoquismo do Eu. Quanto menos agressiva a pessoa se tornar no mundo real, mais severo será o Supereu. (a libido e a destrutividade estão presentes mas não há relação de objeto).
Frederico Celentano

“As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal”

“As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal”. Freud, Obras Psicológicas Completas, vol. XVII.

  1. Os traços de caráter ordem, parcimônia e obstinação que têm em seu espelho a avareza, o formalismo e a obsessão indicam uma intensificação de componentes anal-eróticos. A questão, a partir de então, tornou-se a de saber qual o destino do erotismo anal após a organização genital definitiva? Preserva sua natureza original, mas é reprimido? É assimilado ou sublimado? Encontra lugar dentro da organização genital.
  2. Para explorar essas questões, Freud constrói uma séries de símbolos que podem nos dar pistas de como essa fase pré-genital, como a libido advinda de uma zona erógena e como a pulsão a ela vinculada se estruturam, ganham sentido na vida adulta. Os símbolos utilizados são as fezes, a dádiva e o dinheiro e, também, sua relação com pênis e bebê na organização do psiquismo feminino através da controversa teoria da inveja do pênis que seria substituído, no curso do desenvolvimento da libido feminina, pelo desejo de um bebê e cuja frustração pode levar à eclosão de uma neurose – o amor objetal na mulher somente se perfaria pela substituição do pênis por um homem, como um reforço libidinal inconsciente dentro do processo de castração ou, no caso de uma mulher em que os traços narcísicos são mais acentuados, pela escolha objetal do filho.
  3. O importante aqui, mais uma vez, volta ser ao símbolo das fezes, ou seja, daquilo que se pode dar e compartilhar, obedecendo a um comando, ou daquilo que se retém, onde se afirma uma vontade, um desafio (obstinação a um comando), retirando-se um prazer erógeno da zona por onde se retém e por onde se concede a dádiva. Há, certamente, aqui uma aplicação narcísica ao erotismo anal.
  4. Dessa maneira, o interesse pelas fezes permanece simbolizado como interesse pelo que é criado, pelo que pode ser retido, acumulado, sendo que o dinheiro assume simbolicamente essas características.
  5. Não se pode esquecer também que num primeiro momento a criança efetivamente pode associar o órgão masculino às fezes já que não o vê na mulher, crendo que ele pode ser destacado, criado, produzido. As fezes também se associam à imagem de pênis (que pode se tornar símbolo de poder ou dominação).
  6. Na mulher, as fezes e o pênis convergem em um impulso anal-erótico e em um impulso genital que dão origem à associação com o bebê, dádiva, uma criação. Dessa maneira fezes, pênis e bebê são os três corpos sólidos, forçando a penetração ou expulsão, estimulando passagens membranosas. Dessa forma, é interessante notar como uma correspondência orgânica reaparece na esfera psíquica como uma identidade inconsciente. (Essa frase é talvez, a mais interessante contribuição desse texto: a capacidade de simbolizar o próprio corpo e o corpo do outro, criando relações de objeto e significando essas relações em termos de dádiva/criação, dominação/ retenção e até mesmo acumulação).
Frederico Celentano

A disposição à neurose obsessiva: uma contribuição ao problema da escolha da neurose

“A disposição à neurose obsessiva: uma contribuição ao problema da escolha da neurose”. Freud, Obras Psicológicas Completas, vol. XII.

  1. Freud coloca a importante pergunta de saber por que uma pessoa cai enferma de uma neurose específica (presumo aqui que ele se refere às psiconeuroses de defesa dentre as quais se incluem a histeria e a neurose obsessiva).
  2. Para responder à essa pergunta, ele irá tentar se concentrar no caso da neurose obsessiva e lembra inicialmente que o ser humano passa por várias fases de desenvolvimento das funções sexuais e do ego e que, não somente, esses desenvolvimentos estão conectados, mas ocorrem de maneira tumultuada, podendo surgir no indivíduo um apego a um estádio de desenvolvimento, um ponto de fixação para o qual a função sexual ou do ego tenda a regredir.
  3. (Aqui vale a pena tão somente relembrar os estádios pré-genitais que Freud identifica ao longo do seu desenvolvimento: estádio auto-erótico (1899 – 1905), o estádio narcísico (1909 – 1911), estádio anal-sádico (1913), estádio oral (1915), estádio fálico (1923)). Cf. quadros de conceito dos resumos do primeiro ciclo.
  4. O que determina a regressão são fatores disposicionais ou fatores ligados à história do indivíduo. Freud em seus escritos irá cada vez menos considerar os fatores disposicionais como hereditários, mas tendo relação com o desenvolvimento pré-genital.
  5. (Freud está ainda numa fase preliminar do desenvolvimento do seu pensamento, posteriormente irá separar a Paranóia e a Demência Precoce das psiconeuroses de defesa, irá encontrar um paralelo entre a histeria e o complexo de édipo). Aqui, no entanto, identifica o aparecimento de traços da Histeria, Neurose Obsessiva, Paranóia e Demência Precoce com as fases de desenvolvimento libidinal do ser humano, a histeria aparecendo de maneira bastante primitiva, a Neurose se vinculando ao desenvolvimento do sujeito entre 06 e 08 anos e as parafrenias após a puberdade.
  6. No entanto, o aparecimento de um sintoma patológico nada tem a ver com sua origem na história de desenvolvimento do indivíduo. Embora as parafrenias apareçam após a puberdade, apresentam características (megalomania, dificuldade da transferência na relação analítica) que indicam uma fixação num ponto em que ainda não houve a escolha objetal, na fase auto-erótica ou narcísica.
  7. Dessa forma, Freud supões que as duas psiconeuroses de transferência, a histeria e a neurose obsessiva, teriam seus pontos de fixação em estádios posteriores. Mas, mais do que isso, apoiando-se em observações de casos clínicos e, particularmente, de um caso individual, verificou que a histeria poderia se transformar numa neurose obsessiva no curso do tratamento. Assim, um mesmo conteúdo poderia ser traduzido em linguagens diferentes, mas isso poderia arruinar a tese sobre as fixações específicas para cada tipo nosológico.
  8. Freud afirma, então, que no decorrer do caso em questão, identifica a origem das duas psiconeuroses em conteúdos distintos.  Em primeiro lugar a paciente em questão teria desenvolvido uma histeria de angústia por ter descoberto não poder ter filhos do homem que amava. Em seguida, o homem, percebendo a frustração da esposa, acaba se tornando impotente, o que gera uma neurose obsessiva, formação reativa, aos próprios impulsos sexuais que passou a reprimir (através de uma mania de lavagem e limpeza).  (No entanto, aqui há um problema grave a ser resolvido: é a fixação que é constitutiva e leva a um tipo de neurose, ou o conteúdo recalcado que leva a um tipo de fixação e, portanto, a um tipo de neurose? Em a resposta tendendo para a segunda hipóteses, não haveria fixação constitutiva no desenvolvimento libidinal).
  9. Freud aqui procura justificar a inclusão de um novo estádio no desenvolvimento libidinal. Primeiro o auto-erótico, onde as pulsões parciais do indivíduo buscam satisfação no próprio corpo, ainda fragmentado. Depois, essa mesma satisfação já se faz com a escolha de um objeto que é o próprio corpo, constituído e reconhecido. Mas antes de se chegar à primazia dos genitais, descobre um estádio intermediário, onde predominam os impulsos anal-erótico e sádico.
  10. Freud identificou um forte impulso anal-sádico nas fantasias de espancamento da paciente e supõe que, no período de latência, esse impulso de dominação (ser dominado ou castrado pela dominação) deu ensejo a um crescimento moral exaltado (aqui já se vê em construção a teoria da castração). Quando sua vida sexual desmoronou, a paciente voltou a um estádio infantil anal-sádico.
  11. É preciso lembrar que o erotismo anal está diretamente ligado à atitude passiva. (No entanto, parece questionável a hipótese de que haja uma relação direta entre a disposição anal e o homossexualismo, já que não tem direta ligação com a escolha objetal do mesmo sexo, bem mais complexa e que envolve diversos fatores como a identificação, etc.).
  12.  Tentando responder à questão sobre a existência dos pontos de fixação, Freud insiste em afirmar que há fases pré-genitais e que é errôneo pensar que elas não existiriam e que seria apenas pelo processo de repressão sexual, numa fase já genital, que as neuroses são compelidas a dar expressão ao desejo sexual suprimido por outras vias, sexualizando impulsos não sexuais, como uma compensação pelo desejo que não se pode realizar diretamente. Isso tem direta relação com o reconhecimento da existência de zonas erógenas e de um conceito ampliado de função sexual que não se resume à função genital.
  13. Interessante distinção que Freud faz entre a formação do caráter e da neurose. Naquela a repressão não teve lugar ou teve sucesso e deu origem a formações reativas ou sublimações não patológicas. Na neurose há sempre a repressão e o retorno do recalcado.
  14. Na neurose há conflito e um esforço para impedir que a regressão ocorra. Daí formações reativas e sintomas são produzidos como formas de conciliação, pois a regressão verdadeira significaria obter um prazer que em algum momento foi interditado. Se realizada, poderia ser classificada como uma perversão.
  15. Freud reconhece em sua teoria várias lacunas: a primeira é a compreensão mais profunda de como ocorre a transformação do sadismo e do erotismo anal reprimidos em uma função intelectual elevada como a sede de conhecimento que marca várias pessoas. A segunda lacuna é mais fundamental: articular o desenvolvimento do ego ao desenvolvimento libidinal (interessante notar que Freud não conceitua desenvolvimento do ego). Aqui exemplifica o que quer dizer, afirmando que na neurose obsessiva parece haver uma ultrapassagem cronológica do desenvolvimento do ego ao desenvolvimento da libido. O Ego parece querer proteger sua escolha objetal proibida da hostilidade que espreita por trás dele. A consciência moral se desenvolve precocemente. Daí afirmar-se que o ódio é precursor do amor (ódio pela frustração de uma escolha objetal impossível que irá se transformar em amor por um novo objeto). Ódio (e, portanto, culpa) seriam relações emocionais primárias.
  16. Freud termina o texto fazendo algumas ilações sobre a histeria que estaria ligada aos órgãos genitais, mas haveria algo mais primitivo, já que nas mulheres histéricas se daria uma regressão a um estado pré-genital onde o impulso masculino foi reprimido. Mas não aprofunda o que seria essa sexualidade masculina abandonada e essa relação com a histeria será parcial (se não totalmente) abandonada.

Frederico Celentano

“Atos obsessivos e práticas religiosas”

“Atos obsessivos e práticas religiosas”, Freud, Obras Psicológicas Completas, vol. IX.

  1. Freud procura aqui encontrar na semelhança entre os atos obsessivos e os cerimoniais religiosos uma compreensão interna da neurose obsessiva em suas diversas manifestações. O caráter cerimonial de ambos parece ter como função corrigir algo que está fora de ordem. Os arranjos devem ser realizados seguindo leis tácitas, e com o mesmo rigor. Além disso, os atos obsessivos, assim como os cerimoniais religiosos, podem vir acompanhados de proibições e impedimentos que somente são suspensos após a realização de um certo ritual.
  2. Dessa maneira, a semelhança parece óbvia: o que motiva os atos são os escrúpulos de consciência que qualquer negligencia acarreta. As diferenças são também óbvias: os atos neuróticos são individuais, enquanto os religiosos são estereotipados e possuem um significado social, cultural. O ato obsessivo tem uma significação individual, como se fora uma religião particular.
  3. Mas, há um traço comum entre esses dois funcionamentos: embora haja um sentido (social e particular) em ambos os casos, tanto o doente como o piedoso os realizam sem consciência de seu significado profundo. (Há, portanto, uma entrega ao gozo do Outro, como se poderia dizer no jargão lacaniano). O que o doente e o piedoso experimentam é um profundo sentimento de culpa ou um sentimento inconsciente de culpa.
  4. Esse sentimento de culpa tem a ver com uma repetição constante de uma representação, associada a uma pulsão e reprimida. Da mesma forma que a pulsão é constante, o sentimento de ansiedade também o é e somente pode ser aplacado pela repetição dos rituais compensatórios. O cerimonial surge como uma defesa ou como uma medida protetora (eu diria uma medida retificadora) contra a natureza pecadora do piedoso.
  5. O ponto de encontro entre o presente texto e o imediatamente anterior está na compreensão da origem do ato neurótico obsessivo, como fazendo parte da repressão de um impulso presente na constituição do sujeito, que pôde se expressar em algum momento na infância, sucumbindo à repressão posteriormente. Cria-se no curso desse processo uma consciência especial contra os impulsos primevos. Ela atua como uma formação reativa que se sente constantemente ameaçada pela pulsão advinda do inconsciente.  Na neurose obsessiva há sempre a ameaça do fracasso, instaurando um conflito interminável.
  6. Quando as medidas de proteção se tornam como ineficazes, surgem as proibições que substituem os atos obsessivos “assim como as fobias evitam os ataques histéricos”.  Dessa maneira, o cerimonial aparece como um conjunto de condições para que um ato não seja considerado como “pecaminoso” tanto na neurose como nos rituais religiosos. Esses cerimoniais e proibições são portanto a maneira que o psiquismo encontra para conciliar forças antagônicas.
  7. “A formação de uma religião parece basear-se igualmente na supressão, na renúncia de certos impulsos instituais. Entretanto, esses impulsos não são componentes exclusivamente dos instintos sexuais (…): são instintos egoístas, socialmente perigosos.  Afinal, o sentimento de culpa resultante de uma tentação contínua e a ansiedade expectante sob a forma de temor da punição divina nos são familiares há mais tempo no campo da religião do que no da neurose.”
  8. Há na neurose obsessiva e nas práticas religiosas um deslocamento, como na formação dos sonhos, e que cria representações que visam sempre a restabelecer um equilíbrio original de valores. (São regressivas em ambos os casos: têm como referência um estado em que algo era permitido, mas também um estado anterior de equilíbrio de valores, perdido em um tempo mitológico ou mitologizado)
  9. “(…) podemos atrever-nos a considerar a neurose obsessiva como o correlato patológico da formação de uma religião (…). A renúncia progressiva aos instintos constitucionais, cuja ativação proporcionaria o prazer primário do ego, parece ser uma das bases do desenvolvimento da civilização humana”. (Ou seja, a capacidade de abdicar, de se devotar, de adiar a realização de um desejo, em prol de algo maior, da civilização ou da cultura).
  10. Interessante a última nota de Freud nesse texto: afirma que nas religiões antigas, as iniquidades eram abandonadas à divindade e muitas vezes cometidas em nome dela”. Era assim o meio pelo qual o homem podia se libertar de seus instintos. Ao homem, que não é divino, são vedados certos comportamentos permitidos à divindade.

Frederico Celentano